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sábado, 6 de setembro de 2008

Dever, liberdade e justiça

Na discussão sobre a conduta moral e sobre o seu fundamento três problemas apresentam-se como importantes, a saber, o problema do dever, o da liberdade e o da justiça. Distintos entre si estabelecem correlações um com o outro.
Começaremos a apresentação sobre a teoria do Dever.
Uma primeira noção de dever a entende como a ação segundo uma ordem racional ou uma norma. Em seu primeiro significado, essa noção remonta ao pensamento estóico e está associada à idéia de qualquer ação ou comportamento, dos homens ou dos animais e plantas, que se conforme à ordem racional do todo. Esta ordem racional é o destino, o divino, a providência ou Deus. Assim, o caráter próprio do dever é a conformidade com a vida natural, isto é, o dever pertence a uma doutrina ética que funda a norma no “viver segundo a natureza”, numa vida em conformidade com uma ordem racional.
No pensamento aristotélico a doutrina do dever foi substituída pela doutrina das virtudes e no desejo natural da felicidade e faz referência à ordem racional do todo. Também na ética medieval será ignorada a doutrina do dever e se concentrará na teoria das virtudes, dos hábitos racionais adequados à consecução da felicidade e da bem-aventurança ultraterrena.
A doutrina do dever só voltará a predominar por volta do século das luzes com o pensamento de Immanuel Kant. Em sua ética da normatividade, o conceito estóico do dever é modificado de conformidade à ordem racional do todo, em conformidade com a lei da razão. Para ele, o dever é a ação cumprida unicamente em vista da lei e por respeito à lei.
Diz Kant: “uma ação realizada por dever tem seu valor moral não no fim que deve ser alcançado por ela, mas na máxima que a determina; ela não depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio da vontade segundo o qual essa ação foi determinada, sem relação com nenhum objeto da faculdade de desejar.”
O dever é, em Kant, “a necessidade de realizar uma ação unicamente por respeito à lei”, entendendo-se a palavra respeito como a atitude que não leva em conta quaisquer inclinações naturais. O dever é a ação objetivamente prática na qual coincidem a máxima segundo a qual a vontade se determina e a lei moral. Neste sentido, moralidade e dever coincidem, pois agir moralmente é agir por dever, enquanto agir de acordo com o dever representa a ação legal.
Na ética contemporânea, a doutrina do dever continua ligada à doutrina da ordem racional necessária ou norma (ou conjunto de normas) apta a dirigir o comportamento humano.
Nosso segundo ponto a ser apresentado diz respeito ao tema da liberdade.
A liberdade é a condição daquele que é livre e entende-se como a capacidade de agir por si mesmo. Deste modo, liberdade é autodeterminação, independência e autonomia. Diferente do que se pode pensar comumente, ser livre não é estar isento de quaisquer determinações, mas sim condicionar-se por suas próprias determinações. O sujeito se torna livre quando ele tem em seu comportamento uma orientação ou determinação auto-imposta. Os condicionamentos estão no próprio agente na medida em que se obriga a determinados atos ou comportamentos, quando o sujeito impõe a si mesmo as normas de sua conduta, quando ele é o fundamento de seus atos.
Fala-se em diversas formas de liberdade, cada uma atendendo a uma necessidade existencial do sujeito. Assim, diz-se que há a liberdade política, a liberdade em seu sentido ético, em seu sentido filosófico, liberdade de pensamento, liberdade de crença, etc.
Em seu sentido político a liberdade caracteriza-se pela capacidade de o individuo exercer a sua cidadania dentro dos limites sócio-políticos, ou seja, é a liberdade de exigir os seus direitos definidos e estabelecidos em lei, mas de cumprir os seus deveres, também definidos e estabelecidos em leis. De modo mais específico é a condição de, em uma sociedade, o individuo exercer os seus direitos individuais, como direito de votar e ser votado, direito à liberdade de opinião e de culto, etc. Como se vê expresso na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 “a livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão deve portanto poder falar, escrever, imprimir, livremente, devendo contudo responder ao abuso dessa liberdade nos casos determinados pela Lei.”
Compreendendo-as em seu sentido ético, a liberdade trata-se do direito de escolha pelo individuo de seu modo de agir, independente de qualquer determinação externa, isto não quer dizer que o individuo seja livre para fazer o que bem entende, mas tão somente que seu ato se justifica em sua condição mesma de ação, ou seja, na consciência deliberada em agir. O ato é praticado por uma decisão voluntária e consciente, não sendo uma determinação de quaisquer condições externas ao próprio sujeito. Como nos ensina Descartes “a liberdade consiste unicamente em que ao, afirmar ou negar, realizar ou enviar o que o entendimento nos prescreve, agimos de modo a sentir que, em nenhum momento, qualquer força exterior nos constrange.”
Vê-se que do ponto de vista filosófico a discussão sobre a liberdade apresenta três significados fundamentais, correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo da sua história e que podem ser caracterizadas da seguinte maneira: 1ª) liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é ausência de condições e de limites, 2ª) liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado) e 3ª) liberdade como possibilidade ou escolha, segundo a qual a liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita.
Para a primeira concepção, de liberdade absoluta, incondicional, é livre aquilo que é causa de si mesmo. Sua primeira expressão encontra-se em Aristóteles para quem o ato voluntário é semelhante ao infinito, pois é causa de si mesmo. Essa noção de “princípio de si mesmo” é a definição da lei incondicionada.
Esta noção de liberdade como autocausalidade ou autodeterminação é o fundamento do conceito de liberdade como necessidade, para quem a liberdade consiste não só em ter em si a causa dos próprios movimentos, mas também em ser esta causa. Tal noção atinge todos os seres, mas privilegia o homem, pois a causa do movimento humano é aquilo que o próprio homem escolhe como móbil, enquanto juiz e árbitro das circunstâncias externas. Tal conceito está presente em todas as formas éticas de indeterminismo. Em geral o determinismo consiste em julgar universal o alcance do princípio de causalidade em sua força empírica e, portanto, em negar a causalidade autônoma.
A liberdade como autocausalidade encontra o seu equivalente político na concepção de liberdade como ausência de condições ou regras e recusa de obrigações, isto é, numa concepção de anarquia, em seu sentido mais amplo. Aqui, a liberdade é entendida como recusa de medidas, como ausência de normas.
A segunda concepção de liberdade a identifica com a noção de necessidade. Mantendo laços de identidade com a primeira concepção, entende a liberdade como causa de si próprio, no entanto, ela não é atribuída à parte, mas ao todo, isto é, não é atribuída ao individuo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância, ao Absoluto, ao Estado.
Assim, o homem é livre na medida em que manifesta a necessidade deste todo. Neste concepção, negar que o homem como tal é livre e afirmar que ele é livre enquanto manifestação da autodeterminação cósmica ou divina são a mesma coisa. A liberdade seria o super-determinismo de um plano do ser em relação aos outros e, neste caso, a liberdade, a autodeterminação pertence à situação existencial total cuja expressão é o eu, a parte, o indivíduo.
A esta totalidade (a Substância, o Divino, o Ser, o Estado) atribui-se um poder de autocausalidade ou autocriação que é um poder de coerção sobre os indivíduos, considerados como manifestação dele, como uma parte dele. Vale lembrar que este poder de manifestação também se dá de modo absoluto.
A terceira concepção de liberdade a entende como a possibilidade, como escolha motivada ou condicionada, isto é, como medida de possibilidade. Neste sentido, ser livre não é se identificar com uma totalidade, mas possuir, em determinado grau ou medida, certas possibilidades de escolha. Esta, por sua vez, não é atribuída à divindade, não é absoluta, é sim, limitada pelas possibilidades objetivas, pelos modelos de vida disponíveis, pois o seu autor é o próprio individuo.
Deste modo, a liberdade é delimitada, em primeiro lugar, pelo grau das possibilidades objetivas, sempre em número mais ou menos restrito. Em segundo lugar, sua delimitação decorre da ordem de motivos da escolha. Tal conceito de liberdade é uma forma de determinismo, mesmo que não o seja de necessarismo, pois admite a determinação do homem por parte das condições a que sua atividade corresponde, sem admitir que a partir de tais condições a escolha seja infalivelmente previsível.
Esquecido na antiguidade e no medievo devido à compreensão de liberdade como autocausalidade, quando reapareceu na modernidade, o conceito de liberdade como escolha condicionada, assumiu, em oposição á noção de livre-arbítrio, a forma de negação da liberdade de querer e de afirmação da liberdade de fazer. Há, então, uma liberdade de fazer, não uma liberdade de querer.
Esta concepção, muito bem adotada por Locke em sua teoria política, entende que a liberdade do homem em sociedade consiste em não estar sujeito a outro poder legislativo além do estabelecido por consenso no Estado. Assim, a liberdade consiste na possibilidade de escolhas delimitadas por leis estabelecidas por um poder para isto designado pelos cidadãos. Duas são então, as condições de sua existência: a primeira é a existência de normas que circunscrevem as possibilidades de escolha dos cidadãos e a segunda é a possibilidade de os próprios cidadãos fiscalizarem o estabelecimento destas normas.
O conceito de justiça é o terceiro elemento de discussão neste tópico. Diretamente indissociável dos precedentes, mas distinto deles, a justiça pode ser entendida, em geral como a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Deste modo, distinguem-se dois significados principais: o primeiro como conformidade da conduta a uma norma e o segundo como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas).
No primeiro significado, a justiça é a conformidade de um comportamento (ou de uma pessoa em seu comportamento) a uma norma, sendo esta estabelecida pelo próprio homem ou por uma entidade substancial ou absoluta. Esta noção de justiça como conformidade à norma é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça.
Quer se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral ou de direito positivo, a justiça será sempre entendida como conformidade do comportamento à norma.
No segundo significado a justiça não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma. Aqui, expressa a noção de eficiência da norma, isto é, a sua capacidade de possibilitar a relações humanas. Ela não passa de condição para possibilitar a convivência e a ação conjunta dos homens, ou ainda garantir aquilo que se considera como objetivo fundamental, ou seja, como valor absoluto.
Os fins aos quais se recorreu com mais freqüência são: a felicidade, utilidade, a liberdade e a paz. Se tomarmos a felicidade como fundamento, definem-se como justas as coisas que propiciam ou mantém a felicidade ou parte dela na comunidade política. A consideração da utilidade como fundamento tem a característica de eliminar o caráter de fim ultimo ou valor absoluto, levando a considerá-la como solução de determinadas situações humanas. A identificação de justiça com liberdade realizada por Kant considerará a ilustração como condição que derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie humana.
A consideração da paz como critério de justiça de uma ordenação normativa tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade negativa, ou seja, em sua capacidade de evitar conflitos. Do ponto de vista da Teoria Geral do Direito, tal critério tende a ser considerado restrito demais para julgar da eficiência das normas de direito. Assim, consideram-se dois outros critérios como fundamento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, o de igualdade como reciprocidade e a autocorrigibilidade.
Deste modo, os dois critérios podem conferir à palavra justiça um significado tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quando da justificação interessada das ordenações em vigor. Conclui-se que o emprego do conceito de justiça no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens livres sobre as ordenações normativas que os regem.
Rogério Andrade

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