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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Fascismo Explicado (por quem entende) [DUBLADO]

Fascismo Explicado (por quem entende) [DUBLADO]

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Thomas Hobbes - Leviatã | Prof. Anderson

domingo, 21 de abril de 2019

O Fascismo Eterno (Umberto Eco) - Breves anotações

O Fascismo Eterno (Umberto Eco) – Breves anotações
Por: José Rogério de Pinho Andrade

O texto de Umberto Eco foi uma conferência realizada em 25 de abril de 1995 na Columbia University para celebrar a libertação da Europa e foi publicado pela primeira vez no mesmo ano como “Totalitarismo fuzzy e Ur-Fascismo”. Dirigido aos jovens estudantes dos EUA, e diante de um contexto de descoberta de que existia nos EUA organizações de extrema-direita, o texto pretendia estimular uma reflexão sobre problemas da atualidade de diversos países.
Didática e autobiograficamente, o texto relata a experiência de Umberto Eco com a realidade italiana e europeia no período da Segunda Guerra Mundial marcada pelo Fascismo e a luta da Resistência pela liberdade e pela libertação.
Segundo Umberto Eco, é totalitarista o “regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então o nazismo e o stalinismo eram regimes totalitários”. (ECO, 2018, posição 122).
Partindo deste conceito, o autor considera que o fascismo não foi um regime completamente totalitário, embora tenha sido uma ditadura. A principal razão para este ponto de vista está na debilidade filosófica da ideologia do fascismo que não possuía uma filosofia própria, quando muito uma retórica própria. (ECO, 2018, posição 133).
Por isto mesmo,

Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini. (ECO, 2018, posição 139).

Embora não possuísse uma ideologia própria, mas tão somente uma retórica própria, o fascismo foi capaz de propagar sua mensagem no continente europeu como uma reação ao comunismo, segundo Umberto Eco (2018)

O fascismo italiano convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista. (ECO, 2018, posição 145-147).

O fascismo na compreensão de Umberto Eco, não possuía nenhuma essência, não era uma ideologia monolítica e não passava de um totalitarismo fuzzy[1] por ser o resultado de uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas. (ECO, 2018, posição 148). O fascismo proclamava uma ordem revolucionária, “mas era financiado pelos proprietários rurais mais conservadores que esperavam uma contrarrevolução”. (ECO, 29018, posição 161), era republicano no início, mas proclamava lealdade à família real. Em suma, “o fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.” (ECO, 2018, posição 189).
Ao contrário do nazismo que pode ser caracterizado como único, o fascismo pode ter em seu termo uma adaptação “a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista.” (ECO, 2018, posição 215-217).
Mas a despeito da confusão do que pode definir o fascismo, o autor indica uma lista de características típicas, embora podendo ser contraditórias entre si, daquilo que ele veio a chamar de “Ur-Fascismo” ou “Fascismo Eterno”, são elas:
1. O culto à tradição, ao sincretismo que deve tolerar contradições e como consequência “não pode existir avanço do saber”, pois a verdade já foi anunciada cabendo apenas a interpretação de sua obscura mensagem. (ECO, 2018, posição 228-236).
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade enquanto espírito de 1789 (ou de 1776). O Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. (ECO, 2018, posição 243).
3. O irracionalismo depende do culto da ação pela ação, a ação sem reflexão. “Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas”. (ECO, 2018, posição 252-253). Deste modo, tem-se a suspeita em relação ao mundo intelectual e os intelectuais fascistas empenhavam-se em “acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais”. (ECO, 2018, posição 254).
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas, “para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição” (ECO, 2018, posição 254).
5. “O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença”, assim, é “racista por definição”. (ECO, 2018, posição 261).
6. Como o “Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social”, uma das características típicas dele é “o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos”. (ECO, 2018, posição 261).
7. Ênfase nos ideais do nacionalismo, “assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração, possivelmente internacional”. (ECO, 2018, posição 270).
8. Os adeptos do Ur-Fascismo “devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo”. Entretanto, também devem ser convencidos de que podem vencer os inimigos: este são fortes demais e fracos demais ao mesmo tempo. (ECO, 2018, posição 270).
9. “Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes ‘vida para a luta’. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente”. (ECO, 2018, posição 278).
10. Elitismo e desprezo pelos fracos: “O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos implicaram o desprezo pelos fracos”. (ECO, 2018, posição 286). O Ur-fascismo prega um elitismo popular de caráter nacionalista (todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo) e idólatra do líder como expressão de um elitismo de massa.
11. Educação para o heroísmo: cada cidadão é educado para tornar-se um herói, pois na “ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma”. O culto do heroísmo é ligado ao culto da morte como uma aspiração de uma vida heroica. (ECO, 2018, posição 293).
12. Transferência da vontade de poder para questões sexuais, tais como misoginia e homofobia, pois a guerra permanente e o heroísmo, são jogos difíceis de jogar.
13. Populismo qualitativo afetando as decisões políticas da democracia sob sua perspectiva quantitativa (as decisões da maioria serem acatadas). O povo é concebido como uma entidade monolítica que exprime a “vontade comum” representada na figura de seu líder. Assim, o Ur-Fascismo se opõe ao Parlamento que considera “apodrecido”. (ECO, 2018, posição 302-310).
14. Uso da “novilíngua”[2]: a língua utilizada pelo Ur-Fascismo é de “um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”, podendo aparecer nos tempos atuais na forma de programas midiáticos como “talk show” popular e memes de internet. (ECO, 2018, posição 327).
   Mesmo com a queda dos regimes totalitários e autoritários após a Segunda Guerra Mundial, o “Ur-Fascismo está ao nosso redor, às vezes em trajes civis” e, por isto mesmo, não é impossível que ele volte, ao contrário, é possível que ele volte “sob as vestes mais inocentes” e por isto precisa ser desmascarado em cada uma de suas formas, pois “liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca. Que este seja o nosso mote: ‘Não esqueçam’”. (ECO, 2018, posição 340).


Referência bibliográfica:

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Tradução Eliana Aguiar. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 2018. (Ebook Kindle).




[1] Termo que na lógica designa conjuntos “esfumaçados”, de contornos imprecisos, podendo ser traduzido como “esfumado”, “confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
[2] Referência ao termo inventado por George Orwell em seu romance distópico “1984”, como língua oficial do Ingsog, o socialismo inglês.

terça-feira, 21 de março de 2017

Liberdade: uma síntese do pensamento de Isaiah Berlin sobre o tema

Por: José Rogério de Pinho Andrade

Para os gregos antigos a liberdade política significava “ser capaz de participar no governo da cidade”. “Ser livre era não ser forçado a obedecer a leis feitas por outros para alguém, mas por alguém.” Nesta concepção de liberdade, o governo e as leis não distinguem a esfera da vida pública e a esfera da vida privada, isto é, ser livre era ter o direito de participar na elaboração da vida política, mesmo que isto implicasse, quando necessário, em escrutínio e investigação da vida particular. (BERLIN, 2005, p. 160)
No mundo moderno, especialmente a partir da concepção de Benjamim Constant, a ideia de liberdade distingue a existência da esfera da vida privada que deve ser protegida da inconveniência de interferência da autoridade pública. Isto significa que os governos devem ser limitados quanto à possibilidade de interferência na vida privada. Segundo Berlin (2005, p. 161), a visão moderna, também denominada de visão liberal clássica, aponta que em relação à liberdade, há o pressuposto

De que há uma fronteira entre a vida pública e privada; e de que, por menor que possa ser a esfera da vida privada, dentro dela posso fazer o que quiser – viver como me dá prazer, acreditar no que sinto vontade, dizer o que me agrada - , desde que isso não interferia nos direitos semelhantes de outros, nem solape a ordem que torna esse tipo de arranjo possível. (BERLIN, 2005, p. 161)

Contudo, Berlin (2005, p. 161) esclarece que “o pressuposto de que os homens precisam de proteção uns contra os outros e contra o governo é algo que nunca foi plenamente aceito em nenhuma parte do mundo.” A este ponto de vista, ele denomina de visão clássica ou dos gregos antigos e que consiste fundamentalmente, em interferir na vida privada daqueles que são incapazes de por si próprio assumir as responsabilidades por sua própria conduta.
Segundo esta concepção, se há alguns que fazem pelos outros o que eles mesmos fariam por si próprio se o pudessem, esses não interferem na liberdade dos outros, pois “estão interferindo na vida das pessoas assim como elas são, mas apenas para torná-las capazes de fazer o que fariam se soubesse o bastante, ou estivessem sempre em suas melhores condições, em vez de cederem a motivos irracionais, comportarem-se como crianças ou permitirem que o lado animal de sua natureza predomine.” Assim, por exemplo, se os pais obrigam as crianças a irem à escola mesmo sob a relutância destas, não estão restringindo a liberdade delas, mas trazendo à tona o próprio eu das crianças que se manifestará em sua plenitude na maturidade. (BERLIN, 2005, p. 162)
Para Berlin (2005, p. 162), grande parte da autoridade moderna se baseia em uma teoria deste tipo, isto é,

Dizem-nos que obedecer a essas instituições não é senão obedecer a nós mesmos e, portanto não é escravidão, pois essas instituições encarnam em nós mesmos nossas melhores e mais sábias condições e, o autodomínio não é restrição, o auto controle não é escravidão. (BERLIN, 2005, p. 162)

Uma das questões políticas modernas mais fundamentais diz respeito ao embate entre estas duas visões, a saber, a que entende que interferir na vida das pessoas protegendo-as de suas próprias limitações, não é restringir a sua liberdade, e a outra que não nega que o comportamento antissocial deve ser restringido ou que as pessoas possam ser impedidas de causar danos a si mesmas ou aos que estão sob seus cuidados, mas afirma que isto, mesmo que justificado, é restringir a liberdade. (BERLIN, 2005, p. 162-163)
Assim, segundo esta segunda visão

A liberdade pode ter sido restringida para dar lugar a outras coisas boas, segurança, paz ou saúde; ou a liberdade hoje pode ter sido restringida para tornar possível uma liberdade mais ampla amanhã; mas restringir a liberdade não é proporcioná-la, e a coação, por mais justificada que seja, é apenas um valor entre muitos outros, e se é um obstáculo para garantir outros fins igualmente importantes, ou se interfere nas oportunidades de outras pessoas de alcançar esse fins deve ceder o lugar. (BERLIN, 2005, p. 163) 

A análise crítica desta visão, afirma que ela pressupõe uma divisão da vida em privada e pública, mas que esta visão possui um erro fundamental que consiste em desconsiderar que “o ser humano é um só, e na sociedade ideal, quando as faculdades de todos serão desenvolvidas, ninguém jamais vai querer fazer alguma coisa de que os outros se ressintam ou que desejem interromper.” Assim, “o desejo de ser deixado sozinho, ter permissão de fazer o que deseja sem precisar prestar contas disso a algum tribunal [...] esse desejo é um sintoma de desajuste. Pedir que sejamos livre da sociedade é pedir que sejamos livres de nós mesmos.” (BERLIN, 2005, p. 163)
Numa visão orgânica, a separação entre as pessoas é ruim. Os direitos humanos são “necessários numa sociedade má, mas sem lugar num mundo organizado com justiça em que todas as correntes humanas fluem para um único rio humano sem divisões.” (BERLIN, 2005, p. 164)
Na visão liberal

Os direitos humanos, e a ideia de uma esfera privada em que estou livre de escrutínios, são indispensáveis àquele mínimo de independência que todos necessitam, se quiserem se desenvolver, cada um segundo sua própria linha; pois a variedade é da essência da raça humana, e não uma condição efêmera. (BERLIN, 2005, p. 164)

Para Berlin (2005, p. 164)

Os que propõem essa visão acham que a destruição desses direitos para construir uma sociedade humana universal que se orienta por si mesma – todos marchando para os mesmos fins racionais – destrói aquela área de escolha individual, por menor que seja, sem a qual a vida não parece valer a pena.

Em conclusão, Berlin afirma que os regimes autoritários e totalitários têm representado uma dessas visões e a outra tem sido representada pelas democracias liberais. Contudo, é possível estabelecer combinações e variações dessas visões.

Referência bibliográfica:
BERLIN, Isaiah. A força das ideias. Organização Henry Hardy; tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2005.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Thomas Hobbes - Excertos

"Cabe ao homem sensato só acreditar naquilo que a reta razão lhe apontar como crivel. Se desaparecesse este temor supersticioso dos espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e muitas outras coisas dele dependentes, graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credibilidade da gente simples, os homens estariam muito mais preparados do que agora para a obediência civil". 
(p. 22-23)


"É  portanto evidente que tudo aquilo em que acreditemos, baseados em nenhuma outra razão senão tão-só a autoridade dos homens e dos seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, a nossa fé será apenas fé nos homens". (p. 61)
Os homens "Quando aprovam uma opinião particular chamam-lhe opinião, e quando não gostam dela chamam-lhe heresia; contudo, heresia significa simplesmente uma opinião particular, apenas com mais algumas tintas de cólera". (p. 89)

"Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de certo e de errado, de justiça e de injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não injustiça. [...] A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. [...] São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão". (p. 111)

Fonte: 
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 
Biblioteca particular.

PS: A ser atualizado

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Tratado sobre a tolerância (recortes) - Voltaire

"Sabe-se demais quais foram os custos desde que os cristãos começaram a  disputar por dogmas: correu sangue, seja nos cadafalsos, seja nas batalhas, desde o século quatorze até os dias de hoje." (p. 23)

"A filosofia, unicamente a filosofia, irmã da religião,  desarmou as mãos que a superstição havia ensaguentado por tanto tempo; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, assombrou-se ante os excessos a que o havia lançado o fanatismo". (p. 30)

"Quando não se busca magoar os corações,  todos os corações estão a nosso favor". (p. 30)

"O melhor método de diminuir o número de maníacos,  se é que existe, é o de deixar essa doença do espírito sob o controle da razão,  que esclarece aos homens lentamente, mas de maneira infalível". (p. 36)

"O direito da intolerância é,  portanto, absurdo e bárbaro,  é o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos". (p. 39)

"'Deorum offensae diis curae' (somente os deuses devem ocupar-se das ofensas feitas aos deuses)". (p. 43)

"Eu afirmo cheio de horror, mas com veracidade: somos nós,  os cristãos,  somos nós os perseguidores, os carrascos e os assassinos! De quem? De nossos irmãos". (p. 60)

"Quanto mais a religião cristã é divina, tanto menos pertence ao homem dirigi-la: se foi Deus que a fez, Deus a sustentará sem a nossa ajuda. Você sabe que a intolerância apenas produz hipócritas ou rebeldes: que alternativa funesta!" (p. 63)

"A Escritura nos ensina, portanto, que Deus não só tolerava todos os outros povos, mas que também lhes demonstrava cuidados paternais. E nós ousamos ser intolerantes!" (p. 75)

"Agora eu indago: é a tolerância ou a intolerância que provém do direito divino? Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires, e não carrascos". (p. 86)

"Um ateu polêmico, violento e robusto seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário". (p. 103)

"Em qualquer lugar em que houver uma sociedade estabelecida, uma religião é  necessária; as leis reprimem os crimes conhecidos, enquanto a religião se encarrega dos crimes secretos". (p. 103)

"Não é preciso ter grande arte nem dispor de eloquência bem-elaborada para provar que os cristãos devem tolerar uns aos outros. Mas eu vou mais longe: eu lhes digo que é  necessário considerar todos os homens como nossos irmãos". (p. 109)






quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O que é Política? - Hannah Arendt


O que é Política? – Hannah Arendt
José Rogério de Pinho Andrade

O texto inconcluso de Hannah Arendt “O que é Política?” é aqui tomado como uma referência introdutória para o assunto. Seu caráter reflexivo nos aponta caminhos para entendimento da coisa política e do seu trato em nossos dias. Direta em sua abordagem do que é a coisa política e qual o seu sentido, ou se faz algum sentido? A destacar algumas idéias fundamentais.
     A primeira delas é a compreensão de que a política se dá entre os homens, sendo, deste modo, produto e produzida pelos homens em suas diversas inter-relações. Para a autora, não há “nenhuma substância política original” (p.23). Ela se apresenta como relação do homem para com os outros, iguais ou não, e do homem com o seu espaço. Dá-se, portanto, no plano da História. Precipuamente “a política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas.” (p.24)
Outra idéia destacada do texto, diz respeito á consideração quanto á relação dos preconceitos e dos juízos na política. Ela parte da existência dos preconceitos como sinal de algo já político, isto é, para ela os preconceitos indicam a presença entre nós de algo político, embora, “confundem aquilo que seria o fim da política com a política em si.” (p. 25) No entanto, é na condição do juízo que a autora vislumbra a política propriamente dita, pois, são eles que nos auxiliam no esclarecimento e dispersão dos preconceitos e “o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de formação de opinião.” (p. 30) É por meio dos juízos que se possibilita a manifestação da coisa política como reflexão dos próprios atos humanos.
Um terceiro ponto destacado diz respeito ao sentido que possa possuir a política. Esse sentido para Hannah Arendt é a liberdade.
A liberdade é o espaço próprio onde se pode esperar a realização de milagres, pois “os homens enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo.” (p. 44) Então, a liberdade é a condição de ameaça e de salvação do homem. No primeiro caso, devido à ameaça de destruição que o espaço moderno da política consolidou; de salvação porque é neste mesmo espaço que se vislumbra a possibilidade de não se por a termo os propósitos e se tentar estabelecer uma superação, também política, dos conflitos, pois, “a tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo.” (p. 48)
Tão ou mais do que a igualdade, é o espaço da política próprio para a promoção da liberdade. Segundo a autora, o que é mais assustador nas formas do Estado Totalitário, é a “concepção segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para o desenvolvimento histórico, cujo processo só pode ser impedido pelo homem quando este age e se move em liberdade.” (p.51) É também no espaço de liberdade que se dá a condição de igualdade, pois é o espaço político comum a todos nós. Conforme o pensamento da autora, a liberdade do falar um com o outro “só é possível no trato com os outros” (p. 59) e “só na liberdade de falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala, em sua objetividade visível de todos os lados.” (p. 60)
A liberdade não se confunde com a política, mas é o seu pressuposto, sendo esta ultima um meio e a primeira um objetivo. Deste modo, a pergunta sobre o sentido da política nos dias de hoje diz respeito à conveniência ou inconveniência dos meios públicos da força, do exercício político do Estado, isto é, a força que devia proteger o homem hoje o ameaça de extermínio, pois “onde a força, que é um fenômeno do individuo ou da minoria, liga-se ao poder, que só é possível entre muitos, surge um aumento monstruoso do potencial da força – por sua vez, provocado pelo poder de um espaço organizado, ma que depois, como todo potencial de força, aumenta e se desenvolve às custas do poder.” (p. 79)

Rogério Andrade

ARENDT, Hannah. O que é Política? 3ª Ed. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 21 a 85.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Liberais, libertários e comunitários – todos democratas.


Liberais, libertários e comunitários – todos democratas.
Paulo Ghiraldelli Júnior
http://ghiraldelli.pro.br/2011/08/30/liberais-libertarios-e-comunitarios-todos-democratas/ May 31, 2012

A política brasileira dos últimos anos trouxe má fama ao termo “liberal”, se é que já não bastasse para tal o nosso passado mais distante. O Partido da Frente Liberal (PFL) e o Partido Liberal (PL) que, aliás, já nem mais existem, nunca se pareceram com qualquer coisa que se pudesse imaginar como liberal em um manual de ciência política. Somado a efeitos das mazelas educacionais já tradicionais no Brasil, e também a certo antiamericanismo atávico que perpassa nossa academia, essa má fama da palavra “liberal” ajudou a empurrar nossos estudantes (e infelizmente também alguns professores) para uma quase impossibilidade de compreensão intelectual do liberalismo. No entanto, não há estupidez que se possa vangloriar como sólida por toda a vida.
Quando olhamos antes a filosofia política anglo-americana que a européia-continental, o termo “liberal” não tem como ser descartado. Nessa tradição da literatura em filosofia política, sempre podemos distinguir duas grandes facções, os liberais clássicos e os liberais modernos. John Locke foi o pensador liberal clássico que ensinou a doutrina política da tolerância religiosa e das leis que deveriam proteger a liberdade individual e as propriedades do indivíduo, inclusive e principalmente o pensamento e a vida, também tomados como propriedades. Mas, ao final do século XIX e início do século XX a América já havia produzido os liberais modernos. John Dewey foi um dos grandes entre estes tipos – inclusive como o pai intelectual do New Deal do Presidente Roosevelt. Nos anos setenta, então, John Rawls protagonizou-se como o revigorador dessa linha de pensamento.
Essa corrente dos modernos, a de Rawls, ficou conhecida como a dos liberais igualitários, e fazendo-lhe oposição fixaram-se duas escolas de liberais que, nos Estados Unidos, foram chamadas de libertárias, enquanto que no resto do mundo, talvez de modo errôneo, seus membros tenham ficado conhecidos como “neoliberais”. Esses libertários se dividiram em dois grandes grupos. E ambos tiveram como alvo o trabalho de Rawls.
A ideia básica de Rawls é que o liberalismo como doutrina política funciona segundo uma forma de justiça. No caso, a melhor justiça para tal seria aquela que viesse da teoria criada por ele próprio e batizada como “teoria da justiça como equidade”. Tal modo de vida liberal seria regrado pela ideia da garantia de liberdades básicas, jamais cerceadas senão por razões de outras liberdades, e de modo a favorecer a igualdade de oportunidades, empregos e posições de poder, sendo que toda diferença que viesse a se ampliar na sociedade só se justificaria se efetuada no sentido de beneficiar os menos favorecidos pela sorte. Em outras palavras: o liberalismo promove a liberdade e a igualdade, e qualquer desigualdade surgida deve ser em função dos benefícios dos que estão em pior situação.
É claro que essa ideia de liberalismo de Rawls, baseado na justiça como equidade, acaba por reclamar do Estado uma certa participação mais positiva diante daquela invocada por Locke. Os libertários, obviamente, não poderiam mesmo concordar com isso. Entre os libertários, pensadores como Friedrich Hayek jamais se interessaram por princípios filosófico-morais. Defenderam a ideia de um estado mínimo por razões de eficiência deste em relação ao bem comum. Mas, filósofos como Robert Nozick fixaram-se em princípios. Sua ideia de que Rawls estava errado se baseava em uma questão doutrinária: são direitos naturais do homem poder ficar com o que se consegue ficar por meios legais e legítimos, seja por trabalho, compra e venda, herança ou troca. Assim, qualquer plano redistributivista que a Justiça como Equidade pudesse trouxer à baila, seria por si só uma injustiça.
Esse embate expressou um lado dos confrontos na filosofia política de linhagem anglo-americana. O outro lado ficou por conta das críticas dos comunitaristas aos liberais.
Quando olhamos o panorama geral, podemos ver que a crítica comunitarista ao liberalismo tem suas raízes nas observações de F. W. Hegel contra Immanuel Kant e de Karl Marx contra o liberalismo em geral. Os comunitaristas sabem disso. Todavia, eles nunca se filiaram claramente a qualquer posição que não fosse a democrática. Por isso mesmo, nunca puderam ser colocados como críticos do liberalismo enquanto advogados de qualquer arranhão no tipo de democracia que vingou na América. Assim, pensadores como Michael Walzer, Michael Sandel, Charles Taylor e outros desenvolveram críticas ao liberalismo não necessariamente quanto ao tamanho do Estado. Eles se concentram em aspectos da teoria de Rawls, reclamando do seu caráter abstrato. Essa crítica tem seus percursos e peculiaridades. Mas ela, ao menos em princípio, não é nada fraca ou pouco ambiciosa, pois ela quer atingir a ideia central da doutrina liberal rawlsiana.
Eis o centro do liberalismo de Rawls: trata-se de uma doutrina antes deontológica que teleológica. Em outras palavras: Rawls advoga uma doutrina que visa a constituição prioritariamente de princípios básicos de justiça, sem qualquer ocupação moral que, enfim, queira fixar o que é o bem. Uma doutrina que se preocupa com o bem, e que busca fazer a sociedade se regrar por essa finalidade, é chamada de teleológica. As doutrinas teleológicas são postas de lado por Rawls, em especial uma que ocupa um bom espaço no senso comum inglês e americano: o utilitarismo.
Os utilitaristas pregam que uma doutrina de organização social deve visar antes o bem que a justiça. A ideia geral é a de se colocar a felicidade como o bem. Assim, a felicidade do maior número de pessoas é o que há de mais útil. Sabe-se que algum tipo de socialismo inglês se originou por essa via. Mas Rawls prioriza a justiça e, particularmente, a sua teoria da justiça como equidade. Para ele, o importante é deixar o bem por conta de indivíduos e grupos, como alguma coisa que o pluralismo da sociedade moderna vai manter sempre em discussão. Agora, a justiça, esta sim é de ordem da política. Ela é o liberalismo como garantia da liberdade, que já se explicita na liberdade a respeito de cada um poder defender a sua ideia de como conduzir a vida, a sua perspectiva filosófica e religiosa. Mas ela é, também, o liberalismo como o esforço de proteção dos princípios igualitários.
Ora, os comunitaristas duvidam que essa divisão entre doutrinas deontológicas e teleológicas possa se fazer de modo nítido. Eles acham que nenhuma concepção de justiça, muito mesmo a de Rawls, é neutra quanto a pressupostos morais que, enfim, derivariam da adoção de teorias filosóficas e arranjos religiosos. Pois, para eles, a justiça emerge a partir da moral, e esta vem da ligação das pessoas com as suas tradições, com a sua comunidade e, assim, com as filosofias vigentes e, principalmente, com as religiões do seu lugar de origem. Desfazer-se disso é esvaziar as pessoas. Ora, como que pessoas vazias saberão, enfim, o que é mesmo justo ou não justo?
Os comunitaristas negam que exista princípios universais racionais de moral e justiça. Acreditam que o liberalismo, ao insistir na existência de tais princípios, antes prejudica que ajuda o próprio liberalismo. Enfraquece suas pernas ao fazer um discurso vazio e, assim, abre a porta para fundamentalismos.
Assim, levando a sério a crítica comunitarista, pode-se imaginar que a promissora neutralidade do liberalismo cai por terra. É aí que é interessante chamar a presença de Richard Rorty. Talvez ele tenha sido um dos poucos filósofos da América a perceber que a disputa entre liberais e comunitários não deveria ser levada adiante.
Rorty prefere tomar Rawls como querendo estabelecer não um campo neutro, e muito menos abstrato. Para ele, o que Rawls faz não é kantiano, é historicista. Ralws, para Rorty, não é outro senão aquele que adota claramente a posição do americano que, enfim, tem se dado bem com a divisão entre o que é da ordem da política e, portanto, da justiça, e o que é da ordem da moral, isto é, o que deriva de concepções filosóficas abrangentes e concepções religiosas. Assim, não é o caso de se querer um “eu” abstrato como legislador, mas, ao contrário, cabe desejar exatamente o que os comunitaristas dizem que querem, só que com um detalhe: quem é escolhido como legislador, uma vez vindo da comunidade americana, trará consigo, como sendo básico e comum, a aceitação dos princípios liberais de que não há razão para jogar as questões que envolvem disputa filosófica ou religiosa para o campo da política, ao menos não no sentido de querer com isso arrebentar a estrutura básica da justiça, ou seja, o próprio liberalismo.
O que ocorre então é que o pressuposto de abstração que os comunitaristas denunciam pode ser verdadeiro, mas isso não muda nada em Rawls. Pois, no limite, ele não está mesmo utilizando desse pressuposto. Ele pode ficar com o legislador que emerge prenhe de saberes e valores comunitários. Mas esse legislador, por vir de um meio historicamente liberal democrático, vai agir como quem quer manter o que seria a neutralidade da política diante da filosofia e da religião.
Por isso, Rorty disse que John Dewey havia sido um pensador comunitarista e, ao mesmo tempo, o mais liberal dos democratas americanos. Sandel teve conhecimento do artigo de Rorty em que este leu Rawls por essa nova via e, por isso mesmo, reviu suas posições. No entanto, por outras razões, ele ainda continua atualmente imaginando poder atacar Rawls. Mas isso já é assunto para um outro texto.

Rawls, um tipo de liberal ironista?


Rawls, um tipo de liberal ironista?
Paulo Ghiraldelli Júnior
http://ghiraldelli.pro.br/2011/09/07/raw ls-um-tipo-de-liberal-ironista/ May 31, 2012.

Dois pioneiros americanos discutiam asperamente. A pendenga dos colonizadores era sobre maçãs. A macieira havia nascido no terreno do primeiro, mas seus galhos mais produtivos tinham avançado por cima da cerca, parando por sobre o terreno do segundo. Uma chuva rápida deitou as maçãs todas no terreno do segundo. Qual seria a medida justa para a posse das maçãs? Não conseguindo chegar a um acordo, eles buscaram ajuda na cidade, com um sábio do local. O sábio, então eleito árbitro, examinou o caso e lhes perguntou se queriam que a situação fosse resolvida “pela lei de Deus” ou pela “lei dos homens”. Puritanos até o último fio do cabelo, eles responderam quase que simultaneamente, bastante afirmativos: “pela lei de Deus, é claro!” Então, o sábio pediu a eles uma moeda e, atendido prontamente, examinou o dinheiro para certificar a autenticidade, se de fato era nítido o lado “cara” e o lado “coroa”. Feito isso, então, num impulso do polegar aliado ao indicador lançou-a ao ar, esperando-a cair na palma de uma mão e, num gesto rápido, expôs uma das faces da moeda no dorso da outra mão. Em seguida, deu todas as maçãs a um dos homens.
É difícil encontrar alguém que, ao escutar essa história, não reclame. Como os dois litigantes, a maior parte dos ouvintes, inicialmente, também prefere a “lei de Deus”. Mas os ouvintes fazem isso apenas porque escutam somente a palavra “Deus”, e daí já julgam que o que segue deverá ser algo necessariamente bom. Depois, quando a lei da moeda lançada é aplicada, voltam a se lembrar da razão dos homens terem inventado suas próprias leis. Os homens perceberam que o melhor seria tentar crescentemente anular o modo aleatório das coisas ocorrerem no mundo. A loteria da natureza ou da vida social, ou seja, o que ocorre pela sorte – a “lei de Deus” – parece à nossa intuição moderna algo pouco justo. Entendemos então a razão de termos nos metido nesses casos, criando também “a lei dos homens”, ou melhor, a justiça. Modernamente, estamos já quase acostumados a tentar minorar as desvantagens advindas do que não podemos controlar e decidir, de modo a garantir liberdade e igualdade para todos – principalmente igualdade de oportunidades. Damos o nome a isso de requisito básico da “justiça social”.
Na história da filosofia a ideia atual de “justiça social” tem sua ancestral na busca da cidade justa. Assim, no ponto de partida está a Grécia antiga e no ponto de chegada a América.
O filósofo grego Platão (428-347 a.C.) e o filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002) criaram teorias da sociedade justa. São teorias antes normativas que descritivas. Não são teorias sobre o que é e, sim, teorias tipicamente filosóficas, sobre o deve ser. Mas não são narrativas utópicas, como as que vingaram no Renascimento, que mostravam cidades ideais que jamais poderiam se efetivar; são teorias que podem ser levadas adiante no sentido de guiar a construção de uma sociedade, ainda que se saiba que essa sociedade talvez não venha a funcionar à risca, como a teoria gostaria.
Platão imaginou a cidade justa em associação a uma profunda metafísica, isto é, uma teoria não empírica da natureza humana. Aliás, pode-se dizer que ele criou o pensamento filosófico de tipo metafísico exatamente no contexto da sua reflexão sobre a justiça. Sua descrição da cidade justa, como se apresenta em A República, harmoniza em um só conjunto uma teoria da alma humana e uma hierarquia social. A alma humana é divida em três partes e a cidade, correspondentemente, apresenta três grandes grupos sociais fixos. A psicologia platônica indica a “alma superior” como sendo o intelecto, responsável pela capacidade racional, isto é, pelos cálculos, formulações de juízos e decisões; a “alma espiritual” abriga a disposição, o ímpeto e a coragem; finalmente, a “alma inferior” responde pelas necessidades ligadas a apetites e desejos. Essa psicologia tem como correspondente, no plano social, a hierarquia da população da cidade. Há, então, o grupo de sábios anciãos que funcionam como comandantes da cidade, o de soldados responsáveis corajosamente pela defesa externa e pela paz interna e, por fim, o de trabalhadores manuais, os artesãos e outros. A cidade justa é justa à medida que nada possa quebrar essa ordem hierárquica que lhe permite o seu ótimo funcionamento. Para tal, do grupo dos anciãos é escolhido o rei que, como todos os outros anciãos, é um filósofo. Sendo filósofo, está em contato com a verdade que, admitida como única, também é acessada pelos outros sábios, o que garante o consenso entre o grupo de governo. Desse modo, não há disputa entre as elites, ficando afastada a possibilidade de formação de partidos, cuja consequência, como temia Platão, seria a divisão da guarda e, enfim, do povo, aglutinados em torno deste ou aquele membro da elite. Uma divisão desse tipo, em partidos, acabaria conduzindo a cidade às terríveis disputas internas dilacerantes – bem conhecidas e vividas por Platão – e até mesmo à guerra civil, o que certamente seria o ápice de uma situação de injustiça.
Diferentemente de Platão, em nossos tempos, a proposta de Rawls é considerar a cidade justa como uma cidade democrática, ou melhor, como uma sociedade liberal democrática. Platão não foi um democrata, obviamente. Ele está mais distante de nós, ainda, não só pela sua postura de resistência à democracia, mas também pelo seu desconhecimento da invenção tipicamente moderna chamada liberalismo, uma doutrina que, principalmente quanto à política, reformulou a noção de democracia. No entanto, há algo de Platão em Rawls.
Como Platão, Rawls também vê a justiça como uma virtude. Mas, em que sentido? Platão jamais deixou de lado as quatro virtudes cardeais do mundo antigo grego: temperança, coragem, sabedoria e justiça. As três primeiras deveriam se realizar nos indivíduos enquanto que a última, a justiça, seria uma virtude própria também da cidade. A justiça seria uma virtude coletiva par excellence. Isto é, Platão assumiu a palavra “virtude” em um seu sentido específico, como quando a utilizamos para responder a pergunta “em virtude do que se é o que é isto?”. Ele sabia-se correto ao dizer que a cidade era uma cidade, uma boa cidade, uma coletividade funcional e harmônica se pudesse dizer, por exemplo, coisas como “Esparta é uma cidade (ou boa cidade) em virtude de sua justiça”. Nesse sentido, Rawls não deixa de ser platônico. Uma coletividade é uma sociedade organizada em virtude de sua justiça.
Todavia, quanto a outro aspecto, Rawls não é nada platônico. Enquanto que Platão necessitou de uma metafísica (a até inventou-a por conta disso!) para poder instalar a justiça como legítima, Rawls mostra-se um pensador completamente de seu tempo – o nosso tempo –, criando uma teoria normativa sem metafísica. Ele elabora a noção de “razão pública” como neutra em relação a qualquer “doutrina abrangente” – religiosa ou filosófica (isto é, metafísica). Isto é, Rawls não tem – e diz não precisar – uma teoria filosófica da natureza humana e não apela (principalmente nos seus últimos trabalhos) para qualquer pretensão de universalidade quanto ao que afirma sobre sua teoria – a “teoria da justiça como equidade”.
Talvez se possa dizer, para clarear o leitor já afinado com o meu próprio vocabulário, que Rawls é um tipo de “liberal ironista”, no sentido em que Richard Rorty (1931-2007) criou essa expressão: ele, Rawls, é francamente um liberal à medida que quer uma sociedade cuja política não seja aquela que permite que os mais humildes venham a ser humilhados pelos mais poderosos, mas, ao mesmo tempo, ele não tem nenhum fundamento filosófico com o qual possa condenar aqueles que, em uma sociedade liberal democrática, atuem no sentido dessa má política. A diferença para com Rorty, o que não implica em divergência, é que este vê a justiça como uma ampliação dos círculos de lealdade a que pertencemos na nossa vida – a família, o clã, a cidade, antes que a nação ou a humanidade –, independentemente de tipos de sociedade, enquanto que Rawls se interessa pela justiça como o que pode regrar comportamentos políticos em sociedades do tipo liberal democrática.
No interior da ideia de fornecer uma teoria normativa, ele pressupõe que pode exibir algumas regras para as pessoas avaliarem e, então, escolherem as melhores para o conjunto de sua sociedade. Essas pessoas, ele a denomina de “razoáveis”, os princípios que acolhem são as de sua “teoria da justiça como equidade”.
É notório que cada uma dessas “pessoas razoáveis” de Rawls, como ele as define, deve se parecer bastante com alguém capaz de incorporar a figura do sujeito da filosofia moderna, uma construção certamente metafísica ou próxima desta. Ou seja, seguindo vários modernos (Kant à frente), poderíamos dizer que o ideal seria que todo indivíduo pudesse ser autônomo, isto é, atuar como um sujeito filosófico, aquele que é “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Todavia, Rawls não toma essa formulação em seu sentido metafísico ou filiado a uma grande metanarrativa, mas agarra-a em um sentido metafisicamente desinflacionado. Toma-a naquelas características que podemos mais ou menos encontrar no homem empírico comum, informado, de nossas democracias contemporâneas, herdeiras do ideário e das instituições de divulgação educacional e cultural do Iluminismo. Este não seria senão aquele homem que, vivendo em uma cultura regularmente democrática, ocidental, é abordado pela lei como alguém capaz de entender e avaliar regras não só entre parceiros, mas entre ele e as instituições e, também, assumir compromissos privados e públicos, além de ser alguém que dá valor à liberdade individual de consciência, expressão e locomoção, à igualdade perante a lei e à igualdade de oportunidades, além da tolerância, é claro. Pessoas assim, razoáveis, são convocadas por Rawls para avaliar uma doutrina da cidade justa, dizendo a ela “sim” ou “não”.
Essa doutrina, segundo Rawls, deve ser escolhida por essas pessoas que, por sua vez, estariam na situação que ele denomina de “posição original”, algo equivalente – mas não igual – ao que os primeiros teóricos modernos (os jusnaturalistas) chamaram de posição na situação pré-contratual.
Na terminologia de Rawls, trata-se da “posição original”. Assim, elas estariam como quem veste um “véu de ignorância”. Isto é, não teriam nenhum conhecimento (classe, orientação sexual, renda, religião etc.) que pudesse permitir qualquer certificação sobre o lugar que ocupariam na sociedade a ser regrada. Desconhecendo qual lugar ocupariam na sociedade, elas agiriam como legisladoras prudentes, muito provavelmente realizando uma “escolha racional” dos princípios que deveriam comandar essa sociedade na qual iriam viver. A aposta de Rawls é que elas normatizariam a sociedade de uma forma que mesmo o lugar dos menos favorecidos, não seria um lugar esquecido, pois, caso caíssem nesses lugares ao passarem a viver nessa sociedade, ainda assim viveriam em uma situação cujas dificuldades estariam tendo atenção social. Essa sociedade seria, segundo a aposta de Rawls, uma que pudesse garantir liberdades básicas de modo igual para todos, posições e empregos abertos a todos sob condições justas de igualdade de oportunidades, sendo que as desigualdades sociais e econômicas advindas dessa diferenciação seriam consideradas válidas somente se viessem a beneficiar coletivamente os menos favorecidos.
A ideia de Rawls é a de que um pequeno conjunto de regras (na verdade, dois princípios) é perfeitamente condizente com o liberalismo, que pode então ser rebatizado de “igualitário”, sendo o preferido das pessoas razoáveis. Com essa formulação, Rawls acredita dar um passo a mais no sentido do aperfeiçoamento do liberalismo.
Como sabemos, segundo a tradição britânica, com John Locke (1632-1704), o liberalismo nasceu preocupado em garantir a liberdade individual, a tolerância e, é claro, a propriedade privada.
Havia alguma intenção para com a igualdade, mas não em uma relação harmônica com a liberdade. Filósofos americanos como John Dewey (1859-1956), cujos escritos serviram de base para o New Deal, deram nova coloração ao liberalismo. Alertaram para a necessidade de afastar essa doutrina do exagerado cultivo do “individualismo”, calcado em uma exacerbada tendência de valorizar a proteção da propriedade privada e de promover a liberdade de escolha dos indivíduos, não raro em detrimento de objetivos coletivos necessários ao progresso social. Todavia, se a geração de Dewey forneceu ao liberalismo os ideais que puderam fazer os Estados Unidos se aproximar das preocupações da social democracia europeia, isso não gerou nenhuma nova teoria política normativa. Quando John Rawls trouxe à luz a sua teoria da “justiça como equidade”, não foram poucos os que aplaudiram a iniciativa, e rapidamente ela se tornou o ponto de referência dos debates americanos (e em boa parte dos países de língua inglesa) sobre filosofia política, especialmente a partir dos anos setenta.
Vinte e cinco séculos após Platão, Rawls deu à filosofia política uma teoria da cidade justa que não visa simplesmente o funcionamento social e, sim, o não bloqueio das potencialidades individuais de seus habitantes. Quatro séculos após Locke, Rawls procurou fazer com que o desenvolvimento das potencialidades individuais dos habitantes da cidade justa tenha chance de se harmonizar com a necessária melhoria da sociedade em seu conjunto, talvez a única forma de garantir que potencialidades individuais venham realmente a dar frutos ou, os melhores frutos.