Rawls, um tipo de
liberal ironista?
Paulo Ghiraldelli Júnior
Paulo Ghiraldelli Júnior
http://ghiraldelli.pro.br/2011/09/07/raw
ls-um-tipo-de-liberal-ironista/ May 31, 2012.
Dois
pioneiros americanos discutiam asperamente. A pendenga dos colonizadores era
sobre maçãs. A macieira havia nascido no terreno do primeiro, mas seus galhos
mais produtivos tinham avançado por cima da cerca, parando por sobre o terreno
do segundo. Uma chuva rápida deitou as maçãs todas no terreno do segundo. Qual
seria a medida justa para a posse das maçãs? Não conseguindo chegar a um
acordo, eles buscaram ajuda na cidade, com um sábio do local. O sábio, então
eleito árbitro, examinou o caso e lhes perguntou se queriam que a situação
fosse resolvida “pela lei de Deus” ou pela “lei dos homens”. Puritanos até o
último fio do cabelo, eles responderam quase que simultaneamente, bastante afirmativos:
“pela lei de Deus, é claro!” Então, o sábio pediu a eles uma moeda e, atendido
prontamente, examinou o dinheiro para certificar a autenticidade, se de fato
era nítido o lado “cara” e o lado “coroa”. Feito isso, então, num impulso do
polegar aliado ao indicador lançou-a ao ar, esperando-a cair na palma de uma
mão e, num gesto rápido, expôs uma das faces da moeda no dorso da outra mão. Em
seguida, deu todas as maçãs a um dos homens.
É
difícil encontrar alguém que, ao escutar essa história, não reclame. Como os
dois litigantes, a maior parte dos ouvintes, inicialmente, também prefere a
“lei de Deus”. Mas os ouvintes fazem isso apenas porque escutam somente a
palavra “Deus”, e daí já julgam que o que segue deverá ser algo necessariamente
bom. Depois, quando a lei da moeda lançada é aplicada, voltam a se lembrar da
razão dos homens terem inventado suas próprias leis. Os homens perceberam que o
melhor seria tentar crescentemente anular o modo aleatório das coisas ocorrerem
no mundo. A loteria da natureza ou da vida social, ou seja, o que ocorre pela
sorte – a “lei de Deus” – parece à nossa intuição moderna algo pouco justo.
Entendemos então a razão de termos nos metido nesses casos, criando também “a lei
dos homens”, ou melhor, a justiça. Modernamente, estamos já quase acostumados a
tentar minorar as desvantagens advindas do que não podemos controlar e decidir,
de modo a garantir liberdade e igualdade para todos – principalmente igualdade
de oportunidades. Damos o nome a isso de requisito básico da “justiça social”.
Na
história da filosofia a ideia atual de “justiça social” tem sua ancestral na
busca da cidade justa. Assim, no ponto de partida está a Grécia antiga e no
ponto de chegada a América.
O
filósofo grego Platão (428-347 a.C.) e o filósofo estadunidense John Rawls
(1921-2002) criaram teorias da sociedade justa. São teorias antes normativas
que descritivas. Não são teorias sobre o que é e, sim, teorias tipicamente
filosóficas, sobre o deve ser. Mas não são narrativas utópicas, como as que
vingaram no Renascimento, que mostravam cidades ideais que jamais poderiam se efetivar;
são teorias que podem ser levadas adiante no sentido de guiar a construção de
uma sociedade, ainda que se saiba que essa sociedade talvez não venha a
funcionar à risca, como a teoria gostaria.
Platão
imaginou a cidade justa em associação a uma profunda metafísica, isto é, uma
teoria não empírica da natureza humana. Aliás, pode-se dizer que ele criou o
pensamento filosófico de tipo metafísico exatamente no contexto da sua reflexão
sobre a justiça. Sua descrição da cidade justa, como se apresenta em A
República, harmoniza em um só conjunto uma teoria da alma humana e uma
hierarquia social. A alma humana é divida em três partes e a cidade,
correspondentemente, apresenta três grandes grupos sociais fixos. A psicologia
platônica indica a “alma superior” como sendo o intelecto, responsável pela
capacidade racional, isto é, pelos cálculos, formulações de juízos e decisões;
a “alma espiritual” abriga a disposição, o ímpeto e a coragem; finalmente, a “alma
inferior” responde pelas necessidades ligadas a apetites e desejos. Essa
psicologia tem como correspondente, no plano social, a hierarquia da população
da cidade. Há, então, o grupo de sábios anciãos que funcionam como comandantes
da cidade, o de soldados responsáveis corajosamente pela defesa externa e pela
paz interna e, por fim, o de trabalhadores manuais, os artesãos e outros. A
cidade justa é justa à medida que nada possa quebrar essa ordem hierárquica que
lhe permite o seu ótimo funcionamento. Para tal, do grupo dos anciãos é
escolhido o rei que, como todos os outros anciãos, é um filósofo. Sendo
filósofo, está em contato com a verdade que, admitida como única, também é
acessada pelos outros sábios, o que garante o consenso entre o grupo de
governo. Desse modo, não há disputa entre as elites, ficando afastada a
possibilidade de formação de partidos, cuja consequência, como temia Platão,
seria a divisão da guarda e, enfim, do povo, aglutinados em torno deste ou
aquele membro da elite. Uma divisão desse tipo, em partidos, acabaria
conduzindo a cidade às terríveis disputas internas dilacerantes – bem
conhecidas e vividas por Platão – e até mesmo à guerra civil, o que certamente
seria o ápice de uma situação de injustiça.
Diferentemente
de Platão, em nossos tempos, a proposta de Rawls é considerar a cidade justa como
uma cidade democrática, ou melhor, como uma sociedade liberal democrática.
Platão não foi um democrata, obviamente. Ele está mais distante de nós, ainda,
não só pela sua postura de resistência à democracia, mas também pelo seu
desconhecimento da invenção tipicamente moderna chamada liberalismo, uma
doutrina que, principalmente quanto à política, reformulou a noção de democracia.
No entanto, há algo de Platão em Rawls.
Como
Platão, Rawls também vê a justiça como uma virtude. Mas, em que sentido? Platão
jamais deixou de lado as quatro virtudes cardeais do mundo antigo grego:
temperança, coragem, sabedoria e justiça. As três primeiras deveriam se
realizar nos indivíduos enquanto que a última, a justiça, seria uma virtude
própria também da cidade. A justiça seria uma virtude coletiva par excellence.
Isto é, Platão assumiu a palavra “virtude” em um seu sentido específico, como
quando a utilizamos para responder a pergunta “em virtude do que se é o que é
isto?”. Ele sabia-se correto ao dizer que a cidade era uma cidade, uma boa
cidade, uma coletividade funcional e harmônica se pudesse dizer, por exemplo,
coisas como “Esparta é uma cidade (ou boa cidade) em virtude de sua justiça”.
Nesse sentido, Rawls não deixa de ser platônico. Uma coletividade é uma
sociedade organizada em virtude de sua justiça.
Todavia,
quanto a outro aspecto, Rawls não é nada platônico. Enquanto que Platão necessitou
de uma metafísica (a até inventou-a por conta disso!) para poder instalar a
justiça como legítima, Rawls mostra-se um pensador completamente de seu tempo –
o nosso tempo –, criando uma teoria normativa sem metafísica. Ele elabora a
noção de “razão pública” como neutra em relação a qualquer “doutrina
abrangente” – religiosa ou filosófica (isto é, metafísica). Isto é, Rawls não
tem – e diz não precisar – uma teoria filosófica da natureza humana e não apela
(principalmente nos seus últimos trabalhos) para qualquer pretensão de
universalidade quanto ao que afirma sobre sua teoria – a “teoria da justiça
como equidade”.
Talvez
se possa dizer, para clarear o leitor já afinado com o meu próprio vocabulário,
que Rawls é um tipo de “liberal ironista”, no sentido em que Richard Rorty
(1931-2007) criou essa expressão: ele, Rawls, é francamente um liberal à medida
que quer uma sociedade cuja política não seja aquela que permite que os mais
humildes venham a ser humilhados pelos mais poderosos, mas, ao mesmo tempo, ele
não tem nenhum fundamento filosófico com o qual possa condenar aqueles que, em
uma sociedade liberal democrática, atuem no sentido dessa má política. A
diferença para com Rorty, o que não implica em divergência, é que este vê a
justiça como uma ampliação dos círculos de lealdade a que pertencemos na nossa
vida – a família, o clã, a cidade, antes que a nação ou a humanidade –,
independentemente de tipos de sociedade, enquanto que Rawls se interessa pela
justiça como o que pode regrar comportamentos políticos em sociedades do tipo liberal
democrática.
No
interior da ideia de fornecer uma teoria normativa, ele pressupõe que pode
exibir algumas regras para as pessoas avaliarem e, então, escolherem as
melhores para o conjunto de sua sociedade. Essas pessoas, ele a denomina de
“razoáveis”, os princípios que acolhem são as de sua “teoria da justiça como
equidade”.
É
notório que cada uma dessas “pessoas razoáveis” de Rawls, como ele as define,
deve se parecer bastante com alguém capaz de incorporar a figura do sujeito da
filosofia moderna, uma construção certamente metafísica ou próxima desta. Ou
seja, seguindo vários modernos (Kant à frente), poderíamos dizer que o ideal
seria que todo indivíduo pudesse ser autônomo, isto é, atuar como um sujeito
filosófico, aquele que é “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus
atos”. Todavia, Rawls não toma essa formulação em seu sentido metafísico ou
filiado a uma grande metanarrativa, mas agarra-a em um sentido metafisicamente
desinflacionado. Toma-a naquelas características que podemos mais ou menos
encontrar no homem empírico comum, informado, de nossas democracias
contemporâneas, herdeiras do ideário e das instituições de divulgação
educacional e cultural do Iluminismo. Este não seria senão aquele homem que, vivendo
em uma cultura regularmente democrática, ocidental, é abordado pela lei como
alguém capaz de entender e avaliar regras não só entre parceiros, mas entre ele
e as instituições e, também, assumir compromissos privados e públicos, além de
ser alguém que dá valor à liberdade individual de consciência, expressão e
locomoção, à igualdade perante a lei e à igualdade de oportunidades, além da
tolerância, é claro. Pessoas assim, razoáveis, são convocadas por Rawls para
avaliar uma doutrina da cidade justa, dizendo a ela “sim” ou “não”.
Essa
doutrina, segundo Rawls, deve ser escolhida por essas pessoas que, por sua vez,
estariam na situação que ele denomina de “posição original”, algo equivalente –
mas não igual – ao que os primeiros teóricos modernos (os jusnaturalistas)
chamaram de posição na situação pré-contratual.
Na
terminologia de Rawls, trata-se da “posição original”. Assim, elas estariam
como quem veste um “véu de ignorância”. Isto é, não teriam nenhum conhecimento
(classe, orientação sexual, renda, religião etc.) que pudesse permitir qualquer
certificação sobre o lugar que ocupariam na sociedade a ser regrada.
Desconhecendo qual lugar ocupariam na sociedade, elas agiriam como legisladoras
prudentes, muito provavelmente realizando uma “escolha racional” dos princípios
que deveriam comandar essa sociedade na qual iriam viver. A aposta de Rawls é
que elas normatizariam a sociedade de uma forma que mesmo o lugar dos menos
favorecidos, não seria um lugar esquecido, pois, caso caíssem nesses lugares ao
passarem a viver nessa sociedade, ainda assim viveriam em uma situação cujas
dificuldades estariam tendo atenção social. Essa sociedade seria, segundo a
aposta de Rawls, uma que pudesse garantir liberdades básicas de modo igual para
todos, posições e empregos abertos a todos sob condições justas de igualdade de
oportunidades, sendo que as desigualdades sociais e econômicas advindas dessa diferenciação
seriam consideradas válidas somente se viessem a beneficiar coletivamente os menos
favorecidos.
A
ideia de Rawls é a de que um pequeno conjunto de regras (na verdade, dois
princípios) é perfeitamente condizente com o liberalismo, que pode então ser
rebatizado de “igualitário”, sendo o preferido das pessoas razoáveis. Com essa
formulação, Rawls acredita dar um passo a mais no sentido do aperfeiçoamento do
liberalismo.
Como
sabemos, segundo a tradição britânica, com John Locke (1632-1704), o
liberalismo nasceu preocupado em garantir a liberdade individual, a tolerância
e, é claro, a propriedade privada.
Havia
alguma intenção para com a igualdade, mas não em uma relação harmônica com a liberdade.
Filósofos americanos como John Dewey (1859-1956), cujos escritos serviram de
base para o New Deal, deram nova coloração ao liberalismo. Alertaram para a
necessidade de afastar essa doutrina do exagerado cultivo do “individualismo”,
calcado em uma exacerbada tendência de valorizar a proteção da propriedade
privada e de promover a liberdade de escolha dos indivíduos, não raro em
detrimento de objetivos coletivos necessários ao progresso social. Todavia, se
a geração de Dewey forneceu ao liberalismo os ideais que puderam fazer os
Estados Unidos se aproximar das preocupações da social democracia europeia,
isso não gerou nenhuma nova teoria política normativa. Quando John Rawls trouxe
à luz a sua teoria da “justiça como equidade”, não foram poucos os que
aplaudiram a iniciativa, e rapidamente ela se tornou o ponto de referência dos
debates americanos (e em boa parte dos países de língua inglesa) sobre
filosofia política, especialmente a partir dos anos setenta.
Vinte
e cinco séculos após Platão, Rawls deu à filosofia política uma teoria da
cidade justa que não visa simplesmente o funcionamento social e, sim, o não
bloqueio das potencialidades individuais de seus habitantes. Quatro séculos
após Locke, Rawls procurou fazer com que o desenvolvimento das potencialidades
individuais dos habitantes da cidade justa tenha chance de se harmonizar com a
necessária melhoria da sociedade em seu conjunto, talvez a única forma de garantir
que potencialidades individuais venham realmente a dar frutos ou, os melhores
frutos.
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