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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Lei Natural e Lei Civil na Filosofia Política de Hobbes - uma síntese


Lei Natural e Lei Civil na Filosofia Política de Hobbes
(Norberto Bobbio)

O autor inicia a sua análise destacando que o pensamento político de Hobbes é de fato pertencente à história do Direito Natural, mas que de direito ele pertence ao Positivismo Jurídico. Então o problema: se “jusnaturalismo e positivismo são duas correntes antitéticas, em perene polêmica: uma representa a negação da outra”, como pode Hobbes pertencer às duas ao mesmo tempo?
A solução destacada por Bobbio é a apresentação daquilo que ele considera um dos problemas fundamentais da teoria política hobbesiana, a saber, “o das relações entre lei natural e lei civil”.
Destaca Bobbio que Hobbes expressou uma concepção rigorosa de justiça formal que consiste no cumprimento das obrigações, independente de seu conteúdo. De especial atenção às obrigações políticas, isto é, as obrigações do indivíduo para com o Estado. Deste modo, a justiça está no cumprimento do pacto e a injustiça em seu contrário. No estado de natureza não há de se falar em ações justas ou injustas, pois que não há regras civis e o que predomina é a lei do mais forte.
É na condição política própria da civilização que se figurará o monopólio do Estado sobre o direito de modo absoluto, pois para ele não há outra fonte jurídica que não seja a lei. Faz-se, deste modo, necessário o reconhecimento de que as leis naturais não podem ter condições teóricas para a sua existência.
A teoria política de Hobbes se fundamenta na diferenciação entre a lei natural e a lei civil, sendo a primeira ditada pela razão e a segunda proveniente da vontade. Hobbes entende por razão as operações mentais de cálculo sem nenhum significado ontológico. Ela somente tem valor formal e associa-se a procedimento metodológico. Ela indica o que e bom ou mau sempre em relação a um determinado fim. A lei da natureza não é, assim, uma norma impositiva, mas tão-somente uma conclusão revestida de utilidade para atingir determinado fim.
O fim utilitarista a que se refere Hobbes é a paz, enquanto que para outros jusnaturalistas seria o bem moral. A lei natural aponta as conveniências ou inconveniências para a realização deste fim último, em oposição ao estado natural de guerra.
A conclusão positivista de Hobbes obtida a partir da consideração de que as leis naturais prescrevem ações boas tendo em vista a um certo fim e de que este é a paz ou a conservação da vida se consubstancia na expressão da primeira lei de natureza que é aquela que prescreve a constituição do Estado. É por meio dele que se poderá realizar a paz e, então, ele se funda na própria lei natural, que também servirá para justificar as leis positivas.
As leis naturais na teoria política de Hobbes servem para fundamentar razoavelmente o poder absoluto do soberano e com ele a supremacia do direito positivo. Isto porque, a lei natural resulta do cálculo que indica ao homem que, se ele pretende obter a paz, imprescindível é a obediência incondicional às leis positivas.
O expediente de Hobbes em torno da lei natural aponta que as outras leis que se seguem àquela que prescreve a renúncia aos direitos absolutos do estado de natureza, prescrevem os comportamentos que valem por si mesmos, independentemente da constituição do estado civil. Deste modo, elas obrigam as condutas apenas em termos de consciência e, para o filósofo, elas não teriam valor incondicional, visto que somente as leis civis se revestiriam de tal qualidade.
Ressalte-se que na teoria hobbesiana, as leis de natureza “não são absolutas, mas relativas a um fim, a obrigação que delas deriva não é incondicional, mas condicionada pela obtenção de um fim.” (p. 111) É somente no estado civil, com suas leis positivas e categóricas que as normas se revestem de incondicionalidade.
A lei civil dá a forma ao conteúdo disposto pela lei natural. Depreende-se desta concepção a limitação própria do Estado Liberal que é a pressuposição da existência das leis naturais e de que elas fornecem o conteúdo da atividade normativa realizada pelas leis positivas. Assim, “a função do poder civil, a segurança, consiste em fazer com que as leis naturais sejam observadas.” (p.113) É por meio das leis civis que as leis naturais se tornam obrigatórias.
Recupera-se o caráter absoluto das leis civis e do Estado, pois que é apenas o poder civil que determina o que é lícito e o que é ilícito – independente de qualquer lei superior. Em caso de silêncio das leis positivas, e apenas neste caso, é que as leis naturais são obrigatórias. A sua aplicação é possível por meio da interpretação realizada pelo soberano.
Os dois sujeitos políticos existentes na teoria política hobbessiana, os cidadãos e o soberano, encontram-se em pólos específicos quanto à obediência, tanto no que concerne às leis naturais, quanto às leis civis.
O soberano deve obediência apenas à lei natural enquanto ela se cala para os cidadãos. Já com relação à lei civil, o soberano não está obrigado a obedecê-la, o mesmo não se dando para o cidadão.
No quesito referente às relações intersubjetivas estabelecidas pelo soberano, Hobbes destaca duas espécies: com os outros soberanos e com os súditos. O soberano sendo obrigado a respeitar as leis naturais, ele deve fazê-lo tanto em relação aos súditos, quanto com os demais soberanos. Contudo, a obrigação do soberano em obedecer à lei natural com relação aos outros soberanos, somente é possível se não houver prejuízo para si. Já que não há entre os soberanos um poder superior que estabeleça essa segurança coercitivamente, prevalecendo o estado de natureza, o soberano não é obrigado a pôr em risco sua própria vida e a conservação do Estado, não tendo, portanto, em relação ao comportamento do soberano diante dos outros soberanos, nenhuma eficácia a lei natural.
Da relação entre o soberano e o súdito, depreende-se que a não obediência à lei natural por parte do primeiro, não está autorizado o segundo à desobediência civil, pois que o pacto absoluto que é o Estado fundamenta a ideia de que o “soberano não pode cometer delito ou injustiça em face de seus súditos.” (p. 122)
O soberano ao violar uma lei natural, ele comete um delito contra Deus, não contra o súdito. Por esta razão, não há cabimento ao direito de resistência ao súdito. Este somente é cabível no momento em que a ordem do soberano põe em perigo a vida do súdito. Entretanto, a existência do direito de resistência do súdito não implica um dever correspondente do soberano àquele. O confronto entre o direito do soberano e o direito do súdito é resolvido pelo poder do mais forte.
O fundamento da autoridade do soberano encontra-se na norma natural que “prescreve aos súditos atribuírem ao soberano o poder absoluto de ordenar.” (p.124) Deste modo, mesmo eliminando qualquer influência da norma natural quando da criação do sistema civil, é a norma natural que é o fundamento de todo o sistema.
Mas a posição de Hobbes não implica em admitir a existência de dois direitos. A função da lei natural na teoria de Hobbes é tão apenas de fundamentar e justificar o valor absoluto da sua concepção de direito positivo: “a lei natural não vale como norma jurídica, mas unicamente como argumentação lógica.” (p.16) Não são propriamente leis, mas teoremas.
Temos, então, a seguinte conclusão:
a) Somente o direito positivo pode ter conteúdo de justiça; o direito natural reescreve a necessidade desse ordenamento civil;
b) Não há contradição entre o direito positivo e o direito natural, pois este último tem a única função de convencer que somente pode existir aquele primeiro.

Rogério Andrade

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