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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Príncipe - Maquiavel

“O Príncipe” de Maquiavel passo a passo: adaptação de Maquiavel & O Príncipe de Alessandro Pinzani.

O tema dos primeiros nove capítulos é a aquisição de um principado num território estrangeiro (capítulos III até VII) ou na própria pátria (capítulos VIII e IX): nos capítulos I a IX, Maquiavel fala dos vários tipos de Estados, em particular aos vários tipos de principado, e das dificuldades relativas à conquista de territórios novos e, portanto, ocupa-se brevemente da questão sobre se é melhor contar com a ajuda de outros ou somente com as próprias forças.
Os capítulos X e XI tratam da defesa contra inimigos externos, sendo que este último considera, porém, esta questão de um ponto de vista não muito usual, porque enfrenta o problema se os principados eclesiásticos, que são baseados sobre a religião, precisam de armas para se defender. Dessa maneira, Maquiavel consegue também concluir a investigação acerca dos diversos tipos de principados.
Os capítulos XII até XIV avaliam se é melhor para o príncipe recorrer às milícias mercenárias ou formar uma milícia cívica, e do XV ao XXV ele trata da figura do príncipe e das regras de conduta que deveria seguir. O capítulo XXVI, como já mencionado, consiste numa exortação no sentido de libertar a Itália do domínio das potências estrangeiras, como França, Espanha e Império Alemão.

Os diversos tipos de principado.

O Príncipe inicia com uma série bastante árida de distinções teóricas entre os diversos tipos de Estados ou domínios "que tiveram e têm poder sobre os homens” e que serve para chegar imediatamente ao objeto do seu interesse - deixando de lado todos aqueles tipos de governo que ele não considera eficazes para alcançar o fim prático (a saber, a unificação da Itália).
Uma primeira distinção é aquela entre repúblicas e principados. Maquiavel anuncia que não tratará das repúblicas. Portanto, O Príncipe trata somente dos principados.
Estes podem ser hereditários ou novos. Os hereditários, por si só, não são interessantes por duas razões. Em primeiro lugar, neles "são bem menores as dificuldades para se governar do que nos [principados] novos, pois basta não descuidar da ordem instituída pelos seus antepassados"; portanto, nos principados hereditários, qualquer "príncipe de capacidade mediana" pode manter-se na sua posição, enquanto "é no principado novo que estão as dificuldades".
A outra razão, não indicada explicitamente, é o já mencionado fim político com o qual Maquiavel se decide a escrever O Príncipe: a unificação da Itália só pode acontecer através da criação de um Estado novo.
Este pode ser ou inteiramente novo ou um membro anexo ao estado hereditário do príncipe que o adquire. É isso que interessava a Maquiavel, pois era possível que a Itália fosse unificada a partir de um Estado já existente ou criando uma formação estatal nova. Em ambos os casos, o príncipe deveria enfrentar dificuldades, que variariam conforme os tipos de Estados conquistados e a maneira de conquistá-Ios.
Não contente de ter reduzido o seu objeto aos principados novos, Maquiavel menciona dois outros tipos de Estado, a fim de mostrar a fraqueza deles e eliminá-Ios da sua análise: as tiranias e os principados eclesiásticos (abordados nos capítulos VIII e XI, respectivamente). No caso das tiranias, ele justifica parcialmente a crueldade do tirano: as crueldades "que se fazem de uma só vez pela necessidade de se garantir e depois não se insiste mais em fazer, mas rendem o máximo possível de utilidade para os súditos”.
Maquiavel considerava a utilidade dos súditos como o critério final para julgar as obras dos príncipes. Além disso, ele está longe de pensar que o príncipe deva sempre ser cruel e desumano, pois, a crueldade traz consigo muitos riscos enquanto causa medo e ódio nos súditos - e "os homens ferem ou por medo ou por ódio", como afirma Maquiavel no capítulo VII. Por essa razão, o conquistador deve fazer "todas as ofensas que precisa fazer" de uma só vez, a fim de que, "tomando-se menos o seu gosto, ofendam menos".
Com respeito aos estados eclesiásticos, Maquiavel os considera os únicos "seguros e felizes”, pois a natureza é tal que se torna inútil qualquer ataque ou guerra. Evidentemente, Maquiavel pensa aqui no domínio espiritual do papa ou de outros chefes religiosos. Mas, no seu tempo, a Igreja tinha alcançado também um grande poder temporal. Por isso, nos capítulos XI e XII Maquiavel acusa explicitamente a Igreja de ser uma das causas principais da ruína da Itália. Mais, os papas sempre tentaram reduzir o poder dos outros Estados impedindo assim que um deles conseguisse conquistar e unificar o país.
O interesse principal de Maquiavel não é a questão do surgimento da sociedade civil e do Estado. Mas sim o problema da aquisição do poder em geral e do poder num principado novo em particular. E a atenção para este último problema surge do interesse de Maquiavel pela questão da unificação italiana. O príncipe que unificasse a Itália deveria iniciar o seu feito partindo do zero, ou seja, criando um novo estado através das suas conquistas.

A conquista de novos domínios.

Criar novos domínios apre¬senta dificuldades que mudam de acordo com o tipo de províncias que devem ser conquistadas. Maquiavel inicia a análise dessas dificuldades no capítulo III, no qual recorre a exemplos tirados da Antigüidade (particularmente a romana) e contemporâneos (a política do rei da França Luís XII) para indicar quais são as melhores linhas de ação para quem intenta conquistar novas províncias. Se o território conquistado é da mesma língua e tem os mes¬mos costumes, o príncipe deverá simplesmente "extinguir a dinastia daquele que os dominava”, porque o povo daquela região se acostumará prontamente ao novo senhor. Porém, no caso de se tratar de uma província diferente "por língua, costumes e leis”, as dificuldades são muito maiores.
Os remédios aconselhados por Maquiavel são dois. O primeiro é que o conquistador resida no lugar. Dessa maneira, ele sempre poderá controlar a situação, prever desordens, manter contato direto com os súditos sem deixá-Ios à mercê dos seus funcionários - que poderiam espoliá-Ios. O segundo remédio consiste na fundação de colônias nas regiões conquistadas, conforme o exemplo dos romanos antigos. Em ambos os casos, o príncipe forasteiro deverá se aproveitar do descontentamento daqueles habitantes da província que são menos poderosos e, portanto, invejam "os que são mais poderosos deles". O príncipe forasteiro não terá "dificuldade alguma em atraí-Ios, pois logo todos juntos se unirão ao Estado conquistador. É preciso somente atentar para que não alcancem excessiva força e autoridade .... Quem não governa bem quanto a esse aspecto rapidamente perderá aquilo que tiver conquistado”.
No capítulo IV, Maquiavel inspira-se no exemplo clássico de Alexandre o Grande, cujo império não se desfez com sua morte, como se poderia esperar. A razão, segundo Maquiavel, está no fato de que o império persa e os outros reinos asiáticos conquistados por Alexandre eram governados "por um príncipe de quem eram servidores todos os outros, que, na qualidade de ministros por sua graça ou concessão, o ajudavam a governar aquele reino". Como exemplo contemporâneo, Maquiavel menciona a monarquia turca. Quem quisesse conquistar esse tipo de principado, encontraria grande dificuldade, pois todos os funcionários são muito ligados ao monarca e "dificilmente podem ser corrompidos e, ainda que o fossem, pouco se poderia esperar de útil da parte deles, pois não atrairiam o povo”. Mas, uma vez conquistado o reino e aniquilada a velha dinastia, será muito fácil mantê-Io exatamente porque o povo, não sendo afeiçoado aos seus chefes, não os ajudará nas suas eventuais tentativas de revolta.
De outro lado, há principados que são governados por um príncipe e por barões "que detêm suas posições não pela graça do senhor, mas pela antigüidade do sangue”. Esses barões possuem "súditos próprios que os reconhecem como senhores e nutrem por eles natural afeição”. Um exemplo é a França, onde à senhoria do rei se junta aquela de uma antiga nobreza de sangue. Quem quisesse conquistar aquele reino poderia adquirir facilmente a aliança de algum barão, "pois sempre se encontram descontentes e pessoas com desejo de inovar". Mas, ainda que o príncipe forasteiro não encontre dificuldade em conquistar o reino, ele deve também contar com a resistência dos outros barões e dos súditos a ele afeiçoados, e encontrará, portanto, grande dificuldade em manter a sua conquista.
Nesse capítulo IV se vê, então, como Maquiavel acreditava na existência de um paralelismo entre a Antigüidade e a sua época, e como tinha a convicção de que, em qualquer momento da história, sempre funcionam os mesmos mecanismos e valem as mesmas regras para a ação. Vê-se também como, para Maquiavel, o povo constitui-se somente numa massa passiva privada de vontade própria, um instrumento nas mãos de quem sabe utilizá-Io - nesse caso, o príncipe estrangeiro ou os barões locais.
No capítulo seguinte Maquiavel investiga se é mais fácil conquistar repúblicas ou principados, respondendo que é muito difícil conservar uma cidade habituada a viver em liberdade. Ele elenca três maneiras para alcançar este último fim: destruir a cidade; ir pessoalmente residir nela; ou deixá-Ia viver sob suas próprias leis, limitando-se a impor um tributo e a criar nela uma oligarquia de aliados. Aqui, Maquiavel expõe uma daquelas teses radicais que incentivaram a fama de pensador cínico e sem escrúpulos: "Na verdade, não existe modo seguro de possuir [as repúblicas], exceto a ruína”.
Maquiavel passa então, nos capítulos VI e VIII, a tratar dos principados conquistados respectivamente "com armas próprias e com virtú" ou "com as armas e a fortuna de outrem". No primeiro caso, os conquistadores ou fundadores de reinos souberam aproveitar-se das circunstâncias favoráveis para agir. Ao fazerem isso, encontraram dificuldades, já que foram obrigados a introduzir uma "nova ordem" e "novos métodos" para fundar e manter o Estado. Para Maquiavel isso constitui a coisa "mais difícil de se fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar”. A razão é que o introdutor de uma nova ordem "tem por inimigos todos aqueles que se beneficiam com a antiga ordem”, enquanto aqueles "a quem as novas instituições beneficiariam" são aliados tímidos, em parte por medo dos adversários, em parte por causa "da incredulidade dos homens, que só crêem na verdade das coisas novas depois de comprovadas por uma firme experiência”. Portanto, os inovadores devem dispor de recursos e armas suficientes para atingir seus objetivos; caso contrário, estão fadados à ruína: ''Todos os profetas armados vencem, enquanto os desarmados se arruínam”.

César Bórgia como príncipe ideal.

No capítulo VII Maquiavel nos oferece o exemplo de um homem virtuoso que encarna todas as qualidades necessárias a um príncipe novo: César Bórgia.
Bórgia está sempre entre aqueles "que somente pela fortuna de cidadãos particulares se tornam príncipes”. Eles chegam a isso "com pouco esforço, mas com muito esforço se mantêm”, pois dependem ou da vontade e da fortuna "de quem lhes concedeu o poder”, ou da sua própria fortuna. Esses príncipes precisam, portanto, reforçar a sua posição criando os fundamentos necessários para a estabilidade do seu poder depois de ter alcançado tal poder, e isso é precisa-mente o que Bórgia tentou fazer.
Maquiavel dedica quase todo esse longo capítulo à descrição das ações de César Bórgia, narrando como ele criou um estado independente na Itália central, desfrutando das alianças de seu pai, o papa Alexandre VI. Contudo, não conseguiu influenciar a eleição de um novo papa favorável a ele, e pouco depois seu reino se desfez, e ele precisou fugir para a Espanha, onde morreu comba¬tendo como mercenário. Maquiavel, porém, absolve-o, culpando a fortuna por sua ruína: "Havia no duque tanta magnanimidade e virtú, tão bem sabia como ganhar e perder os homens e tão sólidos eram os fundamentos que em tão pouco tempo construíra para si que, se ele não tivesse aqueles exércitos [inimigos] em seu encalço ou se estivesse em boa saúde, teria superado todas as dificuldades. ... Recapitulando, portanto, todas as ações do duque, eu não saberia em que censurá-Io”.
As considerações sobre César Bórgia e o uso descarado da crueldade, da violência e do perjuro conduziram Maquiavel a enfrentar, no capítulo VIII, o tema daqueles que "chegaram ao principado por atos criminosos". Maquiavel considera a posição desse tipo de príncipe difícil de manter se não sob a condição de fazer "todas as ofensas" de uma vez, para governar depois com benefícios do povo, conforme fez Agátocles.
O capítulo VIII marca uma virada na argumentação de Maquiavel. Até esse ponto, ele havia tratado principalmente da criação de principados novos através da conquista de territórios estrangeiros. Nesse caso, porém, ele se ocupa de príncipes que chegaram ao poder na sua cidade ou no seu país.
Essa é a perspectiva do capítulo seguinte, no qual Maquiavel trata daquele cidadão particular que "se torna príncipe de sua pátria não por atos criminosos..., mas pelo apoio de seus concidadãos”. Esse tipo de principado ele denomina "principado civil". O príncipe recebe o poder ou dos grandes ou do povo. No primeiro caso o príncipe se deparará com mais dificuldades do que no segundo, pois será cercado de muitos que se consideram seus iguais e não se deixam comandar por ele. Além disso, o povo só quer não ser oprimido pelos grandes. É, portanto, mais fácil satisfazer o povo, enquanto os grandes querem dominar e este se constitui num fim potencialmente ilimitado, o qual nunca poderá ser completamente satisfeito. Se o povo se volta hostil para o príncipe, este não deve temer conseqüências imediatas, pois "o pior que um príncipe pode esperar de um povo hostil é ser abandonado por ele; mas dos grandes, quando inimigos, deve temer ... que o ataquem'”. Por outro lado, é mais fácil defender-se contra os grandes "porque são pou¬cos”, e não muitos como no caso do povo. Deve-se também dizer e saber que "o príncipe tem sempre de viver com o mesmo povo, mas lhe é perfeitamente possível prescindir dos mesmos grandes”.
Portanto, o príncipe deverá sempre manter a amizade do povo ou, caso tenha se tornado príncipe pelo favor dos grandes, deverá trair estes últimos e conquistar o favor do povo, "o que também será fácil" por duas razões: a primeira é que ele, como vimos, só quer proteção; a segunda é esta: "Como os homens se ligam mais ao seu benfeitor se recebem o bem quando esperam o mal, nesse caso, o povo se torna mais rapidamente favorável ao príncipe do que se ele tivesse sido conduzido ao principado graças ao seu apoio”. Segundo Maquiavel, "é necessário ao príncipe ter o povo como amigo; caso contrário, não terá remédio na adversidade”. Contudo, ele não pode confiar demasiadamente nos cidadãos e deverá fazer tudo o que está em seu poder para que os súditos tenham necessidade dele.

As milícias.

No capítulo X, Maquiavel muda completamente de perspectiva e passa a considerar a questão de como se defender das tentativas de conquista por parte de outros príncipes. Maquiavel se concentra no caso de quem não possa enfrentar o inimigo diretamente numa campanha militar. O conselho de Maquiavel é "fortificar bem a sua cidade" e governar bem os súditos, de maneira que eles se tornem fiéis ao príncipe.
Maquiavel tratará, ainda, nos capítulos XII a XIV, do caso do príncipe que pode se permitir criar um exército e, em particular, a questão de qual deveria ser a natureza desse exército: se deve ser formado por soldados mercenários ou por uma milícia cívica.
A conclusão por ele oferecida no capítulo XII é de que as armas mercenárias e auxiliares "são inúteis e perigosas", porque são "desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, valentes entre amigos e covardes entre inimigos, sem temor a Deus nem probidade para com os homens”. Além disso, os capitães mercenários "ou são homens excelentes ou não o são". Se o forem, não é possível confiar neles, "porque sempre aspirarão a uma grandeza própria”, quer arruinando o seu patrão, quer oprimindo os outros contra a vontade deles. Se não forem valorosos, por isso mesmo arruinarão o seu patrão.
Maquiavel pensa que o príncipe deveria preferir "até perder com suas tropas a vencer com tropas alheias" e chega a formular uma máxima que parece estar em contradição com tudo o que ele escreve em outras passagens a respeito da importância de o príncipe se ocupar em governar bem sobre os seus súditos: "Deve, portanto, um príncipe não ter outro objetivo, nem pensamento, nem tomar como arte sua coisa alguma que não seja a guerra, sua ordem e disciplina, porque esta é a única arte que compete a quem comanda”. Na realidade, o conhecimento desta "arte" constitui um requisito indispensável no mundo de Maquiavel, no qual a política se reduz fundamentalmente à luta para conquistar o poder através da astúcia ou da força e mantê-Io através das armas.

As virtudes do príncipe: moral e política.

A partir do capítulo XIV, e mais especialmente do XV, Maquiavel muda o objeto de sua análise e começa a ocupar-se, agora, da figura do prín¬cipe. Com respeito à figura do príncipe apresentada por Maquiavel nesses capítulos, deve-se sublinhar quatro conceitos fundamentais, a fim de se entender a posição do nosso autor: virtú, ocasião, fortuna e necessidade.
A virtú na qual fala Maquiavel não é a virtude no sentido tradicional clássico ou cristão, isto é, entendida como excelência moral, como qualidade de caráter moralmente positiva. Maquiavel se inspira muito mais no conceito latino de virtus, ou seja, como qualidade que contradistingue o vir, o homem varonil, conforme a definição de vir virtutis (homem virtuoso) ofe-recida por Cícero. Isso não significa que a virtú se deixa identificar simplesmente com a coragem ou a bravura.
Conforme a interpretação de Maquiavel desse conceito clássico, a virtú é uma excelência de caráter que aponta para a consecução de determinados fins políticos e que está baseada em capacidades práticas, das quais parte é congênita, e portanto não suscetível de ser modificada, e parte é aprendida, e por isso passível de ser aperfeiçoada. A virtú não possui nenhuma qualidade moral. Consiste muito mais numa mescla de qualidades diversas e, em parte, opostas, cujo valor só pode ser julgado a respeito de sua aplicabilidade na práxis política: coragem, valentia militar, magnanimidade, resistência, prudência e sobretudo a capacidade de reagir da maneira melhor em cada situação. O homem virtuoso sabe adaptar-se às diferentes ocasiões. Ele não possui o caráter sólido e inflexível do homem do ideal estóico, que prefere se quebrar a se dobrar às circunstâncias. O homem virtuoso é flexível e possui elementos do caráter do leão e da raposa: sabe ser cruel ou astuto conforme as circunstâncias.
No que diz respeito às tradicionais virtudes aristotélicas ou cristãs, o príncipe não precisa possuí-Ias verdadeiramente. Deve, antes, causar a impressão de possuí-Ias (assim como no caso de todas as outras qualidades). Na realidade, Maquiavel, ao libertar o homem virtuoso dos deveres mo¬rais que as tradições clássica e cristã impõem aos indivíduos, não recusa essas tradições, nem defende uma posição de amoralismo absoluto. Ele pretende somente separar decisivamente os âmbitos da moral e da política. Em relação ao primeiro, Maquiavel se revela freqüentemente um moralista rígido, ligado às concepções tradicionais de virtude e de moralidade individual. Se lermos, então, sua antropologia como catálogo de qualidades negativas e não simplesmente como enumeração moralmente neutra das características humanas, e se considerarmos suas obras literárias, viria ao nosso encontro a figura de um Maquiavel que condena os vícios tradicionais e prega o temor a Deus (como na sua Exortação à penitência, um sermão escrito para um domin¬go de Quaresma).
Sobre a política, os critérios para julgar ações e comportamentos nesse âmbito não podem ser os mesmos do âmbito moral. O único critério aceito por Maquiavel é o êxito. Um príncipe pode ser louvado ou vituperado pelas suas qualidades, mas o sucesso em conseguir os seus fins políticos lhe produzirá sempre louvor, sendo-lhe, por conseguinte, mais importante do que qualquer excelência moral. Logo, se o príncipe, para alcançar tais fins, precisa fazer uso da crueldade ou da avareza, então, tanto pior para a moralidade tradicional! Dessa maneira também as qualida¬des morais tornam-se simples instrumentos na luta pelo poder e o sucesso político.
Isso não significa que Maquiavel não possa distinguir ações boas de ações más em seu sentido tradicional. Mas na política não há lugar para julgamentos morais deste tipo. Cada qualidade humana que a tradição considerava uma virtude (humanidade, generosidade etc.) ou como um vício (crueldade, avareza etc.) deve ser julgado exclusivamente com respeito aos seus efeitos na práxis política. Se uma certa qualidade humana serve para a obtenção do fim estabelecido, então ela é boa - em sentido não-moral -; senão é nociva - mas não "má" em sentido moral. Por essa razão, no capítulo XVI, Maquiavel contradiz uma opinião comum a todos os tradicionais manuais para prín¬cipes e afirma que é melhor para o príncipe ser miserável (ou "incorrer na fama de miserável”, como ele escreve, e conforme sua idéia de que as aparências contêm mais do que a realidade) do que ser liberal, pois ser miserável "é um dos vícios que lhe permitem governar”. Pela mesma razão, Maquiavel afirma no capítulo seguinte que é melhor ter a fama de cruel, pois "é muito mais seguro ser temido do que amado”.
Maquiavel passa então a comparar, no capítulo XVIII, o príncipe a um centauro, que compartilha a natureza huma¬na e a animal. Assim, o príncipe deve saber usar qualidades próprias de dois animais: por um lado, a ferocidade e a força do leão; por outro, a astúcia da raposa, a capacidade de simular e dissimular e a habilidade de enganar os outros. Como justificativa Maquiavel aponta o fato de que esse preceito não seria bom se os homens fossem todos bons; porém, sendo eles maus e não cumprindo sua própria palavra, o príncipe não precisa respeitar as promessas feitas aos homens.
Nos capítulos sucessivos Maquiavel insiste na reformulação da imagem tradicional do príncipe, aconselhando-o a não fugir do ódio em geral, mas somente do ódio do povo, pois sem ter o povo ao seu lado sempre se encontrará em grandes dificuldades: "A melhor fortaleza que existe é não ser odiado pelo povo”, e sendo assim o príncipe não deve deixar de entretê-Io "com festas e espetáculos”. O príncipe não deve, além disso, ter receio de tomar posição a favor de um poderoso e contra outro: "Esse partido é sempre melhor do que se manter neutro”, porque, se dois dos seus vizinhos entrarem em guerra, o vencedor poderia considerar a sua neutralidade como sinal de hostilidade e tornar-se inimigo; portanto, "será sempre mais útil declarar-se e fazer jogo limpo". Uma prudência excessiva leva à ruína, porque assim quer a fortuna.
Por fim, no capítulo XXIII, Maquiavel admoesta o príncipe para que não confie nos aduladores e naqueles que oferecem conselhos não pedidos. Um príncipe prudente é o melhor conselheiro de si mesmo e não precisa de outros.
As virtudes mencionadas no Príncipe são consideradas nessa obra apenas em seu caráter político: o príncipe deve tê-Ias, ou parecer tê-Ias, para alcançar o sucesso político, e não para tornar-se um indivíduo moralmente melhor. Nesse senti¬do, o jogo entre virtú e ocasião fica extremamente complexo, já que o homem virtuoso deve adaptar-se à ocasião particu¬lar, embora isto pareça não ser uma garantia suficiente para o êxito de sua ação devido ao papel da fortuna. Maquiavel escreve a respeito de Ciro, Rômulo e demais conquistadores ou fundadores de reinos: "Examinando suas ações e suas vidas, veremos que não receberam da fortuna mais do que a ocasião, que lhes deu a matéria para introduzirem a forma que lhes aprouvesse. E, sem ocasião, a virtú de seu ânimo se teria perdido, assim como, sem a virtú, a ocasião teria seguido em vão”.
Uma conseqüência ulterior é a dificuldade de compa¬rar os homens virtuosos entre si não somente porque eles possuem qualidades diferentes e em medida diferente, mas também porque devem demonstrar a sua virtú em circunstâncias diversas.

O papel da fortuna nas coisas humanas.

O conceito de oca¬sião introduz um elemento de temporalidade no ideal do homem político de Maquiavel: embora possa ter muitas qualidades pessoais, ele deve ser capaz de reagir de maneira justa nas situações difíceis; caso contrário, toda a sua virtude resultará inútil.
Para Maquiavel, há dois tipos de necessidade: o primeiro é a necessidade imposta aos homens por outros homens, como no caso da coação exercida pelo soberano sobre os seus súditos. É nesse tipo de necessidade que Maquiavel pensa ao dizer que os homens são bons somente se necessitados de o ser. O segundo tipo de necessidade é imposta aos homens (a todos eles) pela fortuna. Nessa concepção, Maquiavel revela o seu ataque à tradição clássica e à sua idéia de Fortuna como deusa da fatalidade e dos golpes da sorte. Na Idade Média, sobretudo a partir de Agostinho, essa idéia foi substituída por aquela da providência divina, mas a imagem da Fortuna com a sua roda (com a qual giram as sortes humanas) ficou presente na imaginação popular e também em numerosos tratados de moral. No Renascimento, a fortuna voltou a ser considerada o motor das vicissitudes humanas, porém sem o fatalismo que permeava a concepção clássica. Segundo os humanistas, a fortuna pode ser vencida pela razão e pela virtude dos homens. Maquiavel se coloca entre os dois extremos, o fatalismo clássico e o otimismo humanista. Fortuna pode ser vencida, mas isso é muito difícil, porque pressupõe a capacidade de mudar a própria natureza para adaptar-se às novas circuns¬tâncias criadas pela sorte, e poucos são os indivíduos capa¬zes disso, particularmente quando eles tiveram êxitos, por¬que não poderão admitir a necessidade de mudar sua trilha.
A fortuna em Maquiavel é menos uma força obscura e cega do que uma entidade pessoal, dotada de vontade e de fins próprios: ''A fortuna ¬ sobretudo quando quer enaltecer um príncipe novo, que tem maior necessidade de elevar sua reputação do que um príncipe hereditário - cria-lhe inimigos e movimentos de oposição para que ele tenha oportunidade de superá-Ios e possa, por meio da escada colocada por seus inimigos, subir mais alto”.
Logo, é muito difícil eliminá-Ia. Nem por isso Maquiavel cai no pessimismo. Se a fortuna é uma pessoa dotada de vontade, ela é também "mulher" e pode ser dominada e batida particularmente pelos impetuosos e pelos jovens, "porque são menos tímidos, mais ferozes e a dominam com maior audácia". A parte teórica do livro (o último capítulo é a exortação para libertar a Itália) é concluída, portanto, com um derradeiro convite ao prín¬cipe para ser audaz e feroz, a fim de alcançar êxito.

Rogério Andrade.