Por: José Rogério de Pinho Andrade
Para os gregos antigos a liberdade política significava “ser capaz de participar
no governo da cidade”. “Ser livre era não ser forçado a obedecer a leis feitas
por outros para alguém, mas por alguém.” Nesta concepção de
liberdade, o governo e as leis não distinguem a esfera da vida pública e a
esfera da vida privada, isto é, ser livre era ter o direito de participar na
elaboração da vida política, mesmo que isto implicasse, quando necessário, em
escrutínio e investigação da vida particular. (BERLIN, 2005, p. 160)
No mundo moderno, especialmente a partir da concepção de Benjamim
Constant, a ideia de liberdade distingue a existência da esfera da vida privada
que deve ser protegida da inconveniência de interferência da autoridade
pública. Isto significa que os governos devem ser limitados quanto à
possibilidade de interferência na vida privada. Segundo Berlin (2005, p. 161),
a visão moderna, também denominada de visão liberal clássica, aponta que em
relação à liberdade, há o pressuposto
De que há uma fronteira entre
a vida pública e privada; e de que, por menor que possa ser a esfera da vida
privada, dentro dela posso fazer o que quiser – viver como me dá prazer,
acreditar no que sinto vontade, dizer o que me agrada - , desde que isso não
interferia nos direitos semelhantes de outros, nem solape a ordem que torna
esse tipo de arranjo possível. (BERLIN, 2005, p. 161)
Contudo, Berlin (2005, p. 161) esclarece que “o pressuposto de que os
homens precisam de proteção uns contra os outros e contra o governo é algo que
nunca foi plenamente aceito em nenhuma parte do mundo.” A este ponto de vista,
ele denomina de visão clássica ou dos gregos antigos e que consiste
fundamentalmente, em interferir na vida privada daqueles que são incapazes de
por si próprio assumir as responsabilidades por sua própria conduta.
Segundo esta concepção, se há alguns que fazem pelos outros o que eles
mesmos fariam por si próprio se o pudessem, esses não interferem na liberdade
dos outros, pois “estão interferindo na vida das pessoas assim como elas são,
mas apenas para torná-las capazes de fazer o que fariam se soubesse o bastante,
ou estivessem sempre em suas melhores condições, em vez de cederem a motivos
irracionais, comportarem-se como crianças ou permitirem que o lado animal de
sua natureza predomine.” Assim, por exemplo, se os pais obrigam as crianças a
irem à escola mesmo sob a relutância destas, não estão restringindo a liberdade
delas, mas trazendo à tona o próprio eu das crianças que se manifestará em sua
plenitude na maturidade. (BERLIN, 2005, p. 162)
Para Berlin (2005, p. 162), grande parte da autoridade moderna se baseia
em uma teoria deste tipo, isto é,
Dizem-nos que obedecer a
essas instituições não é senão obedecer a nós mesmos e, portanto não é
escravidão, pois essas instituições encarnam em nós mesmos nossas melhores e
mais sábias condições e, o autodomínio não é restrição, o auto controle não é
escravidão. (BERLIN, 2005, p. 162)
Uma das questões políticas modernas mais fundamentais diz respeito ao
embate entre estas duas visões, a saber, a que entende que interferir na vida
das pessoas protegendo-as de suas próprias limitações, não é restringir a sua
liberdade, e a outra que não nega que o comportamento antissocial deve ser
restringido ou que as pessoas possam ser impedidas de causar danos a si mesmas
ou aos que estão sob seus cuidados, mas afirma que isto, mesmo que justificado,
é restringir a liberdade. (BERLIN, 2005, p. 162-163)
Assim, segundo esta segunda visão
A liberdade pode ter sido restringida
para dar lugar a outras coisas boas, segurança, paz ou saúde; ou a liberdade
hoje pode ter sido restringida para tornar possível uma liberdade mais ampla amanhã;
mas restringir a liberdade não é proporcioná-la, e a coação, por mais
justificada que seja, é apenas um valor entre muitos outros, e se é um
obstáculo para garantir outros fins igualmente importantes, ou se interfere nas
oportunidades de outras pessoas de alcançar esse fins deve ceder o lugar.
(BERLIN, 2005, p. 163)
A análise crítica desta visão, afirma que ela pressupõe uma divisão da
vida em privada e pública, mas que esta visão possui um erro fundamental que
consiste em desconsiderar que “o ser humano é um só, e na sociedade ideal,
quando as faculdades de todos serão desenvolvidas, ninguém jamais vai querer fazer alguma coisa de que os outros se ressintam ou que desejem interromper.”
Assim, “o desejo de ser deixado sozinho, ter permissão de fazer o que deseja sem
precisar prestar contas disso a algum tribunal [...] esse desejo é um sintoma
de desajuste. Pedir que sejamos livre da sociedade é pedir que sejamos livres
de nós mesmos.” (BERLIN, 2005, p. 163)
Numa visão orgânica, a separação entre as pessoas é ruim. Os direitos
humanos são “necessários numa sociedade má, mas sem lugar num mundo organizado
com justiça em que todas as correntes humanas fluem para um único rio humano
sem divisões.” (BERLIN, 2005, p. 164)
Na visão liberal
Os direitos humanos, e a
ideia de uma esfera privada em que estou livre de escrutínios, são
indispensáveis àquele mínimo de independência que todos necessitam, se quiserem
se desenvolver, cada um segundo sua própria linha; pois a variedade é da
essência da raça humana, e não uma condição efêmera. (BERLIN, 2005, p. 164)
Para Berlin (2005, p. 164)
Os que propõem essa visão
acham que a destruição desses direitos para construir uma sociedade humana
universal que se orienta por si mesma – todos marchando para os mesmos fins
racionais – destrói aquela área de escolha individual, por menor que seja, sem
a qual a vida não parece valer a pena.
Em conclusão, Berlin afirma que os regimes autoritários e totalitários
têm representado uma dessas visões e a outra tem sido representada pelas democracias
liberais. Contudo, é possível estabelecer combinações e variações dessas
visões.
Referência bibliográfica:
BERLIN, Isaiah. A força das ideias. Organização Henry Hardy; tradução Rosaura
Eichenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2005.