O
Discurso da Servidão Voluntária passo a passo.
José Rogério de Pinho Andrade
O livro começa apresentando uma citação da Ilíada de Homero que diz
Não é bom ter vários senhores.
Um só seja o senhor, um só seja o rei.
Étienne de La Boétie analisa a afirmação e considera que nela há uma
contradição, pois se a dominação de muitos não é boa, a de um só também não é,
pois “o poder de um só, quando adota o título de soberano, torna-se duro e
irracional”. (LA BOÉTIE, 2009, p.29)
E acrescenta que “é a maior desgraça estar sujeito a um soberano de cuja
bondade nunca se pode ter certeza e que tem sempre o poder de ser mau quando
quiser. E ter vários senhores é ser tantas outras vezes extremamente infeliz”.
(LA BOÉTIE, 2009, p. 29)
No livro o autor não tem como objetivo discutir se as outras formas de
República são melhores que as monarquias e aponta uma desconfiança quanto a
acreditar que possa haver algo de público em um governo no qual tudo depende de
um só. Assim, seu objetivo principal é
entender como tantos homens, tantos burgos, tantas
cidades e tantas nações suportam às vezes de um tirano só, que não tem mais
poder do que o que lhe dão, que só pode prejudicá-los enquanto quiserem
suportá-lo a contradizê-lo. (LA BOÉTIE, 2009, p. 30)
Tal situação, para o autor, é admirável, mais de tão comum, torna-se
lastimável
[...] ver um milhão de homens servir miseravelmente
e dobrar a cabeça sob o jugo, não que sejam obrigados a isso por uma força que
se imponha, mas porque ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados somente
pelo nome de um, que não deveriam temer, pois ele é um só, nem amar, pois é
desumano e cruel com todos. (LA BOÉTIE, 2009, p. 30)
Encerra esta primeira seção do texto enfatizando a fraqueza dos homens
que é a de serem “forçados a obedecer, obrigados a contemporizar, nem sempre
podem ser os mais fortes”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 30)
Os deveres recíprocos da amizade absorvem boa parte de nossa vida
Nesta seção o autor abordará a ideia de que os deveres recíprocos da
amizade absorvem boa parte de nossa vida e que se os habitantes de um país
encontrarem em seu meio alguém que mereça o respeito e a obediência não seria
prudente tirá-lo de onde poderia fazer o bem e colocá-lo onde poderia fazer o
mal. Assim refere-se ele à amizade
Amar a virtude, estimar as belas ações, ser gratos
pelos benefícios recebidos e, muitas vezes, reduzir nosso próprio bem-estar
para aumentar a honra e o progresso daqueles que amamos, e que merecem ser
amados, é uma correspondência justa à razão. (LA BOÉTIE, 2009, p. 31)
Deste modo entende o filósofo que “parece ser natural ser bom em relação
àquele que nos proporcionou o bem e não temer mal algum da parte dele”. (LA
BOÉTIE, 2009, p. 31)
O recurso à amizade é para que o autor possa se questionar como é
possível que um grande número de pessoas obedeça e sirva àquele que a tiraniza
e, mesmo sofrendo todas as formas de crueldade, não de um exército, contra o
qual cada um deveria arriscar a vida para defender-se, mas de um homem só, e
nem sendo o mais forte e corajoso dos homens.
O que motivaria tal comportamento seria a covardia daqueles que servem?
De alguns poderia ser a condição de não reagirem, mas não da maior e mais
numerosa parte. E se não é a covardia que, o que mantém a condição de servidão?
Quais irão com mais coragem ao combate?
Nesta seção o filósofo mostra que a aqueles que lutam para manter a
liberdade o fazem com mais coragem do que aqueles que o fazem por razões
financeiras. Os primeiros “têm sempre diante dos olhos a felicidade de sua vida
passada e a expectativa de um bem-estar igual no futuro”. (LA BOÉTIE, 2009, p.
33) Quanto aos do segundo tipo, só possuem como estimulo a cobiça que se
dissipa diante do perigo. O autor apresenta como exemplos de que a luta para
preservar a liberdade é a mais significativa delas os generais atenienses
Milcíades (Batalha de Maratona) e Temístocles (Batalha de Salamina), e o
espartano Leônidas (Batalha das Termópilas). Enfatiza a bravura destes
lutadores inspirada na liberdade.
La Boétie (2009, p. 34) destaca ainda nesta seção que não é preciso
combater e nem derrubar àquele que tiraniza, “ele se destrói sozinho, se o país
não consentir com a sua servidão”. O posicionamento do filósofo é o de que os
próprios povos se deixam mal-tratar e que seriam livres se deixassem de servir:
“É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre
ser submisso ou ser livre renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente
com seu sofrimento, ou melhor, o procura”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 34)
Ele encerra esta seção reforçando que a liberdade é um direito natural,
o mais caro de todos eles, mas se mostra cético quanto ao fato de que os homens
lutem por sua própria liberdade. “Não existe nada mais caro para o homem do que
readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de animal voltar a ser
homem. Contudo, não espero dele ousadia tão grande”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 340
Mais arruínam e destroem quanto mais é dado a eles
Assim como o fogo que cresce à medida que encontra combustível para
alimentá-lo, age o tirano. Para extinguir o fogo, é suficiente não alimentá-lo
com combustível, o mesmo poderia ser feito com os tiranos. La Boétie considera
que
[...] os tiranos quanto mais pilham mais exigem.
Mais arruínam e destroem quanto mais é dado a eles. Quanto mais servidos mais
se fortalecem e se tornam cada vez mais fortes e dispostos a aniquilar e
destruir tudo. Mas basta não lhes dar nada e não lhes obedecer, sem combatê-los
ou atacá-los, e eles ficam nus e são derrotados, e não são mais nada [...]. (LA
BOÉTIE, 2009, p. 35)
O autor enfatiza, ainda, que os homens ousados e prudentes não temem e
nem regateiam nenhum esforço para conseguir o bem que desejam, já “os covardes
e os preguiçosos não sabem suportar o mal nem recuperar o bem. Limitam-se a
desejá-lo e a energia de sua pretensão lhes é tirada por sua própria covardia”.
(LA BOÉTIE, 2009, p. 35) Acrescenta que esse desejo que é comum aos sábios e
aos imprudentes, aos corajosos e aos covardes, fez com que desejassem todas as
coisas cuja posse os tornaria felizes e contentes. No entanto, o mesmo não
acontece com a liberdade, o que incompreensivelmente, os homens “não têm sequer
força para desejar”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 35) O autor considera que os homens
apenas desdenham da liberdade porque a teriam se a desejassem, isto é, como
obter a liberdade é fácil demais, parece que se recusam a obtê-la.
Viveis de tal maneira que não podeis gabar-vos de algo que vos pertence.
Nesta seção o autor se refere à insensatez das pessoas e das nações
quando se trata da própria felicidade. Deixam-se pilhar os seus bens e parecem
que olham com grande sorte terem-lhes deixado apenas metade de seus bens e de
sua vida, e tudo isto como obra de uma única pessoa, o tirano.
Então, o filósofo reforça a ideia de que o tirano possui a mais do que
aqueles a quem oprime apenas os meios da opressão e que foram dados a eles
pelos próprios oprimidos. Quem oferece os bens a serem pilhados e as condições
para a atuação do tirano, são os próprios indivíduos e nações, então é deles
que pode vir a solução que consiste em não mais servirem ao tirano, como ele
diz
Sede resolutos em não querer servir mais e sereis
livre. Não vos peço que o enfrenteis ou o abaleis, mas somente que não o
sustenteis mais, e o vereis, como grande colosso do qual se retirou a base,
despencar e despedaçar-se debaixo do próprio peso. (LA BOÉTIE, 2009, p. 37)
E ele encerra a seção reforçando o objetivo do texto que é “compreender,
se for possível, como essa vontade obstinada de servir criou raízes tão
profundas que se julgaria que o próprio amor à liberdade não é tão natural”.
(LA BOÉTIE, 2009, p. 37)
Somos todos companheiros, ou melhor, todos irmãos.
O autor inicia esta seção afirmando que se vivêssemos de acordo com os
direitos e ensinamentos da natureza, “seríamos naturalmente obedientes aos
pais, sujeito à razão, e não seríamos escravos de ninguém”. (LA BOÉTIE, 2009,
p. 37) A tese do autor é de que há entre os homens uma igualdade natural e que
as diferenças existentes naturalmente não justificam a opressão, mas sim a
fraternidade:
Se há algo claro e evidente, ao qual ninguém pode
ficar cego, é que a natureza, ministra de Deus e governante dos homens, criou
todos nós da mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para nos mostrar que
somos todos companheiros, ou melhor, todos irmãos. [...] ao conferir partes
maiores a uns e menores a outros, quis dar espaço à afeição fraterna para que
ela tivesse onde ser praticada, pois uns têm o poder de prestar ajuda, enquanto
outros necessitam recebê-la”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 38)
Assim, não há de se justificar a opressão pelo discurso da desigualdade
natural, pois, segundo o autor, “não pode entrar no entendimento de ninguém que
a natureza tenha posto alguém em servidão, porque ela nos reuniu a todos em
companhia”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 38)
Também seria inócuo debater se a liberdade é natural, pois La Boétie
(2009, p. 38-39) entende que manter alguém em opressão é impossível sem
prejudicá-lo, e nada é mais contrário à razão do que a injustiça. E conclui que
a liberdade é natural e nascemos também com a paixão para defendê-la, o que se
pode verificar pelo comportamento dos animais que lutam e reagem quando se
tornam prisioneiros, se debilitam e continuam a viver para lamentar seu
bem-estar perdido, ou ainda se deixam morrer para não sobreviverem à perda de
sua liberdade natural.
Ele utiliza-se da analogia com o comportamento animal diante de uma
opressão para reforçar o seu questionamento de como pode o homem, contrariando
a própria natureza, suportar a opressão. Em suas palavras
[...] se todo ser dotado de sentimento sente o peso
da sujeição e busca a liberdade; se os animais, mesmo postos a serviço do
homem, não conseguem acostumar-se a servir a não ser depois de protestar com um
desejo contrário, que fatalidade pôde perverter a natureza do homem, o único
que nasceu para viver livre, a ponto de fazê-lo perder a memória de seu ser
primitivo e o desejo de recuperá-lo?
Sugam com o leite a natureza do tirano
Nesta seção La Boétie (2009, p. 40) abordará os tipos de tiranos e como
alcançam o poder. Ele inicia a seção afirmando que há três tipos de tiranos:
uns adquirem o poder por eleição, outros pela força das armas e, por fim, os
que o adquirem por sucessão hereditária.
Aqueles que adquirem “o poder pelo direito da guerra se comportam como
se estivessem em país conquistado. Os que nascem reis geralmente não são
melhores”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 40) Aqueles a quem o povo entregou o poder
pareceriam mais suportáveis, mas tão logo se vê acima de todos, considera que o
poder conferido pelo povo deve ser transmitido aos seus filhos e, deste modo,
“superam os outros tiranos em todos os tipos de vícios, e mesmo em crueldade” e
passam a assegurar a tirania reforçando a servidão e afastando os seus súditos
da liberdade, que logo se apagará da memória.
Há pouca diferença entre estes tiranos, mas de opção nenhuma, eles
chegam ao trono por meios diversos, mas a maneira de reinar é quase sempre a
mesma “Os que
são eleitos, tratam o povo como touros a serem domados, os conquistadores como
sua presa, os sucessores como um bando de escravos que lhes pertencem por
natureza”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 41)
Ele encerra esta seção afirmando que “para que os homens, enquanto
conservam algo de humano, se deixem sujeitar, é preciso que sejam forçados ou
enganados”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 41) Quando por engano, com frequência são
seduzidos e enganados por si mesmos.
Não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão
O autor inicia esta seção estarrecido “em ver como o povo, quando é
submetido, cai de repente num esquecimento tão profundo de sua liberdade, que
não consegue despertar para reconquistá-la”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 42) Não
apenas perde a liberdade, mas ganha a servidão.
Inicialmente obedecem pela força, mas posteriormente servem sem
relutância e fazem voluntariamente o que seus antepassados fizeram por
imposição
Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e
educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como
nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos a não ser os que
encontraram. Chegam finalmente a persuadir-se de que a condição de seu
nascimento é natural. (LA BOÉTIE, 2009, p. 43)
La Boétie (2009, p. 43) atribui à força do hábito a responsabilidade da
servidão e da opressão, ele chega mesmo a impor-se à própria natureza: “As
sementes do bem que a natureza coloca em nós são tão miúdas e frágeis que não
podem resistir ao menor choque de um hábito contrário”.
Experimentaste o favor do rei, mas não sabes o gosto da liberdade
Nesta seção La Boétie (2009, p. 47) reforçará a ideia de que
universalmente “a sujeição é detestável e a liberdade é cara”. Mas que se deve
ter piedade daqueles que já nasceram sob o jugo e a opressão, se deve
perdoá-los ou desculpá-los, pois “não tendo sequer visto a sombra da liberdade
e não tendo ouvido falar dela, não se dão conta do mal de serem escravos”.
O autor apresenta, então, a primeira razão da servidão voluntária que é
o hábito. O que expressa as suas palavras: “O homem é naturalmente livre e quer
sê-lo, mas sua natureza é tal que se amolda facilmente à educação que recebe”.
(LA BOÉTIE, 2009, p. 48)
No entanto, o hábito não legitima a opressão, na verdade com o passar
dos anos, aumenta a injúria. Assim, sempre há aqueles que nunca deixam de
pensar na liberdade, pois dotados de um espírito claro e evidente, não se
contentam como os demais, o populacho. Para eles, a liberdade é sentida em seu
espírito e a saboreiam, enquanto a servidão lhes causa repugnância.
O Tirano os priva de toda liberdade, não só de falar e de agir, mas até
de pensar.
La Boétie (2009, p. 49) considera que outra maneira de se efetivar a
opressão é privando os súditos de “toda liberdade, não só de falar e de agir,
mas até de pensar”, pois “os livros e a instrução dão mais que qualquer outra
coisa aos homens o bom senso e o entendimento para se reconhecerem e odiarem a
tirania”. Sem conhecimento e reconhecimento entre si, mesmo em grande número,
aqueles que se devotam à liberdade perdem a eficácia de sua ação.
Ele encerra este tópico destacando a segunda razão pela qual os homens
servem voluntariamente. Ela está intimamente ligada à primeira razão, que é o
fato de nascerem os homens servos e serem educados como tais e “sob os tiranos,
os homens se tornam facilmente covardes efeminados”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 51)
Para ele, as pessoas submissas não têm brio e nem entusiasmo no combate, o
mesmo não acontece com os homens livres que “disputam a preferência em lutar
pelo bem comum, porque associam a ele seu interesse particular: todos esperam
ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 52)
Os tiranos, prejudicando a todos, são obrigados a temer todo o mundo
Utilizando-se do livro do historiador grego Xenofonte (Hierão, ou Os
deveres de um rei) que “descreve a punição que sofrem os tiranos que,
prejudicando a todos, são obrigados a temer todo o mundo” (LA BOÉTIE, 2009, p.
52-53), o filósofo reforça a sua tese de que o tirano só sente assegurado o seu
poder quando somente lhe resta como súditos homens sem valor, isto é, homens
“efeminados” e ignorantes, pois “esta é a inclinação natural do povo ignorante,
cujo número é cada vez maior nas cidades: desconfia daquele que o ama e
acredita naquele que o engana”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 54)
Os meios que os tiranos empregavam para entorpecer seus súditos sob o
jugo
Os tiranos antigos utilizavam-se de jogos e espetáculos, passatempos de
diversos tipos para manter sob o seu jugo os seus súditos. Os romanos valiam-se
das festas e da distribuição de alimentos. Assim, os súditos homenageavam o rei
e por este era ludibriado, pois “os imbecis não percebiam que recuperavam
apenas parte do que era seu, e que mesmo a parte que recuperavam o tirano não
poderia dar-lhes se, antes, não a tivesse tirado deles mesmos”. (LA BOÉTIE,
2009, p. 55)
Alguns belos discursos sobre o bem público o interesse geral
Nesta seção La Boétie abordará o papel dos belos discursos na manutenção
da tirania. É na realidade um destaque à relação do tirano com os seus súditos
por meio dos belos discursos, em especial aqueles de caráter sagrado e
misterioso. Assemelha-se ao papel atribuído à ideologia e à religião por Karl
Marx. Então, agem os tiranos por meio de discursos que revelam a realidade tal
como interessa a eles, e para isto utilizam do mistério, em especial o de
caráter religioso, como nos diz La Boétie (2009, p. 58)
Os próprios tiranos achavam estranho que os homens
pudessem suportar um homem que os maltratasse. Por isso se cobriam de bom grado
com o manto da religião e, se possível, queriam tomar emprestada alguma amostra
da divindade para manter sua vida malvada.
Assim, o filósofo aponta uma terceira razão que possibilita a manutenção
da servidão e com ela a tirania, a saber, a devoção, como deixa entrever na
indagação “[...] não está claro que os tiranos, para se manter, esforçaram-se
para acostumar o povo, não só á obediência e à servidão, mas ainda à sua
devoção?” (LA BOÉTIE, 2009, p. 61)
No entanto, ele reforça que isto somente é utilizado pelos tiranos
“entre o povo miúdo e grosseiro”. Então, La Boétie (2009, p. 61) chega “a um
ponto que é [...] a mola mestra e o segredo da dominação, o apoio e o
fundamento da tirania”. Este ponto diz respeito àqueles que defendem o tirano,
que não são os exércitos, mas apenas quatro ou cinco.
Cúmplices de suas crueldades, companheiros de seus prazeres,
favorecedores de suas libidinagens e beneficiários de suas rapinas.
São sempre cinco ou seis que, obtendo a confiança do tirano, se tornam
seus cúmplices e aproveitam suas libidinagens e suas rapinas. Diz ele, “Esses
seis dominam tão bem seu chefe que ele se torna mau para a sociedade, não só
com suas próprias maldades, mas também com as deles”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 62)
Eles se multiplicam, adquirem o governo das províncias ou a administração do
dinheiro público e os exercem para benefício próprio, como isenção das leis e
das punições. Assim, La Boétie reforça a argumentação de que a tirania se
mantém porque beneficia a muitos outros, além do próprio tirano, como nos diz o
filósofo “[...] com os ganhos e favores que se recebem dos tiranos, chega-se ao
ponto em que são quase tão numerosos aqueles para os quais a tirania parece
proveitosa quanto aqueles para quem a liberdade seria agradável”. (2009, p. 62)
E encerra esta seção afirmando que no entorno do tirano reúne-se toda a
escória para apoiá-lo e “para participar do butim e se tornar pequenos tiranos
sob o grande tirano”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 63)
É assim que o tirano subjuga os súditos uns por meio dos outros.
A tirania se estabelece por meio uns dos outros, isto é, o tirano não a
exerce sozinho, pois conta com a ajuda daqueles que desejam beneficiar-se da
convivência com ele. É assim, também que ele se protege contra aqueles a quem
deveria precaver-se.
Os bajuladores do tirano não estão livres da opressão, mas “infelizes e
abandonados por Deus e pelos homens se contentam em suportar o mal e em
fazê-lo, não àquele que o fez a eles, mas àqueles que, como eles, estão
condenados a sofrê-lo e nada podem fazer”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 64) Para o
filósofo aproximar-se do tirano é afastar-se cada vez mais da liberdade e
abraçar-se à servidão. Aqueles que estão mais próximos do tirano, são mais
infelizes do que os camponeses e os artesões, pois estes não são obrigados a
cumprir o que lhes é imposto.
Do lado do tirano, há a desconfiança com relação àqueles que o cercam e
o bajulam, ele “vê os que o cercam como pessoas que trapaceiam e mendigam seus
favores”. Tais pessoas são mais infelizes porque se anulam diante do que deseja
e precisa o tirano, chegam mesmo a se atormentarem e trabalhar pelos interesses
dele “E, já que só sentem prazer com o que lhe dá prazer, precisam sacrificar
seu gosto pelo dele, forçar seu temperamento e renunciar até seus afetos
naturais”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 64) O questionamento do filósofo é se é
possível chamar isso de vida? E se há condição mais miserável do que esta,
viver “não tendo nada de seu e dependendo do outro quanto à sua satisfação, sua
liberdade, seu corpo e sua própria vida?” (LA BOÉTIE, 2009, p. 65)
Esta passagem do texto, reforça o entendimento do autor de mais uma
razão para submeter-se à opressão, qual seja, os bajuladores “querem servir
para acumular bens, como se não pudessem ganhar nada que não fosse deles, pois
nem sequer podem dizer que são donos de si mesmos”, assim “querem tornar-se
possuidores de bens, esquecendo-se de que são eles que lhe dão a força para
tirar tudo de todos e não deixar nada que se possa dizer que seja de alguém”,
mas eles vêem que “são os bens que tornam os homens mais dependentes de sua
crueldade, que para ele não há crime mais digno de morte do que a riqueza”. (LA
BOÉTIE, 2009, p. 65) É o desejo de querer e possuir que alimenta a opressão e a
tirania.
Mas os bajuladores não podem esquecer que não estão livres da opressão e
da tirania, a sua condição de proximidade do tirano não lhes dá isenção do
poder dele, pois muitos foram esmagados por tal opressão. Como nos diz o
filósofo
Entre o grande número daqueles que se encontram
próximos de reis maus, foram poucos, para não dizer quase nenhum, os que não experimentaram
eles mesmos a crueldade do tirano, que antes estimularam contra outros. Muitas
vezes enriquecidos à sobra de seu favor com os despojos alheios, no fim o
enriqueceram eles mesmos com seus próprios despojos. (LA BOÉTIE, 2009, p.
65-66)
Essas pessoas de bem não poderiam manter-se junto ao tirano
As pessoas de bem não poderiam manter-se junto ao tirano, pois se
ressentiriam do mal comum e experimentariam em si mesmas a tirania. Com
exemplos o filósofo mostra que o tirano não é digno de confiança e que não é
capaz de oferecer amizade, pois tem o “coração tão duro capaz de odiar todo um
reino que não faz senão obedecer-lhe, e de um ser que, não sabendo amar,
empobrece a si mesmo e destrói seu próprio império”. (LA BOÉTIE, 2009, p.
66-67)
Com exemplos históricos, como o de Nero e do imperador Cláudio, o
filósofo demonstra que aqueles que caem na graça do tirano e se mantêm por suas
maldades acabam não durando mais. Como não sabem fazer o bem, os tiranos
dirigem a sua opressão e maldade contra aqueles que estão próximos e, por isto
mesmo, quase todos os tiranos antigos foram mortos por seus favoritos, pois
“conhecendo a natureza da tirania, estes não estavam seguros a respeito da
vontade do tirano e desconfiavam de seu poder”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 68)
O tirano nunca ama e nunca é amado
La Boétie entende que
a amizade é um sentimento sagrado [...]. Nasce da
estima mútua e se alimenta não tanto dos benefícios quanto dos bons costumes. O
que dá a um amigo a certeza da amizade do outro é o conhecimento de sua
integridade. Tem como garantias sua bondade natural, sua felicidade, sua
constância. (LA BOÉTIE, 2009, p. 69)
E, por isto mesmo, é que não é possível haver amizade a partir daqueles
e entre aqueles que são cruéis, desleais e injustos. Como ensina o filósofo:
“Quando os maus se reúnem há uma conspiração, não uma sociedade. Não se amam,
não se temem. Não são amigos, mas cúmplices”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 69)
Não seria possível encontrar um amor sincero em um tirano, pois já
encontrando-se “acima de todos e não tendo companheiros, já está além dos
limites da amizade. Esta floresce na igualdade, desenvolve-se sempre igual e
nunca pode claudicar”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 69)
Os favoritos do tirano não podem contar com ele porque aprenderam que
ele pode tudo, que não está sujeito a nenhuma obrigação e a nenhuma lei, mas
tão somente à sua própria vontade e, por fim, não têm nenhum companheiro, pois
é senhor de todos.
Com estas colocações, o filósofo lamenta que, “com tantos exemplos
evidentes, sabendo que o perigo está tão presente, ninguém queira tirar a lição
das misérias de outros e que tantas pessoas se aproximem ainda tão naturalmente
dos tiranos?” (LA BOÉTIE, 2009, p. 69)
Mostrar sempre um rosto sorridente quando o coração está apreensivo
Ainda se referindo aos bajuladores, La Boétie (2009, p. 70) inicia a
seção considerando que estes aproximam-se do tirano sem se darem conta de sua
própria consumação. No entanto, se conseguirem livrar-se do senhor a que
serviam, caem nas mãos do novo rei: “Se for bom, é preciso então lhe prestar
contas e submeter-se finalmente à razão. Se for mau como o seu antecessor, não
pode deixar de ter também seus favoritos que, geralmente, não contentes em
ocupar o lugar dos outros, tiram-lhes também, na maioria das vezes seus bens e
suas vidas”.
Como a situação não é de amizade, pois baseada na desconfiança, o
filósofo entende que ela é o castigo e martírio que pode haver, pois há de se
passar dias e noites “imaginando maneiras diferentes de agradar” ao tirano, bem
como manter-se alerta e suspeitar de todos, além do mais, fingir sobriedade e
sorrir quando a situação é de apreensão e medo. Não pode estar alegre, nem
ousar estar triste. (LA BOÉTIE, 2009, p. 71)
Já em conclusão de suas ideias, o filósofo afirma que “É realmente um
prazer considerar o que lhes reverte desse grande tormento, e ver o bem que
podem esperar dos sofrimentos de uma vida tão miserável”. (LA BOÉTIE, 2009, p.
71) Compreendendo a vida que levam, os oprimidos aprendem que “geralmente, não
é o tirano que o povo acusa do mal que sofre, mas aqueles que o governam”. E
continua relatando que são eles conhecidos e recebem do povo insultos,
maldições e o escárnio, mesmo depois de sua morte, “as gerações seguintes nunca
são tão indolentes que não deslustrem de mil maneiras os nomes desses
devoradores de povos com a tinta de mil penas e destrocem sua reputação em mil
livros”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 71)
Em seu encerramento, o filósofo conclama a aprendermos a fazer o bem, a
agradecermos, para a nossa honra ou por virtude, a Deus e diz acreditar que Ele
reserva aos tiranos e seus cúmplices um castigo especial, “pois nada é mais
contrário a um Deus bom e clemente que a tirania”. (LA BOÉTIE, 2009, p. 72)
Bibliografia Consultada e Referência Bibliográfica
CHAUÍ,
Marilena. Iniciação à Filosofia: ensino
médio, volume único. São Paulo: Ática, 2010, p. 507.
LA BOÉTIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária: texto integral. Tradução Casemiro
Linarth. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 72. (Coleção a obra-prima de cada
autor; vol. 304)
OLIVEIRA,
Eleusa Gomes de. A Servidão Voluntária: resumo. Universidade Estadual de
Goiás. Goiás, 2006. Disponível:
Acesso em: 6 de ago. 2011.
Sítios na internet:
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_de_La_Bo%C3%A9tie.
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