Resposta à Pergunta: Que é esclarecimento [Aufklärung]?
José Rogério de Pinho Andrade
Immanuel Kant. In: Fundamentação da Metafísica dos
Costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003.
1. DEFINIÇÃO DO ILUMINISMO
Esclarecimento
[Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é
culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a
direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a
causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e
coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].
2. DIFICULDADE PARA O HOMEM DE SAIR DO
ESTADO DE MENORIDADE
A
preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no
entanto, de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que
explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão
cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um
diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a
respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não
tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se
encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da
humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade
difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a
seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado
doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não
ousarem dar um passo fora do caminho para aprender a andar, no qual as encerraram,
mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora,
este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar
finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar
tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no
futuro. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da
menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor
a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento,
porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e
fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso de
seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se
livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito
fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muitos
poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir
da menoridade e empreender então uma marcha segura.
Que
porém um público se esclareça [aufkläre] a si mesmo é perfeitamente possível;
mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-ão
sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores
estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o
jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação
racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O
interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por
eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado
a se rebelar por alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de
qualquer esclarecimento [Aufklärung]. Vê-se assim como é prejudicial plantar
preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou
predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao
esclarecimento [Aufklärung]. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do
despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca
produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos,
assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa
destituída de pensamento.
3. CONDIÇÃO ESSENCIAL PARA O ILUMINISMO É A
LIBERDADEDE FAZER USO PÚBLICO DA RAZÃO
Para
esse esclarecimento [Aufklärung], porém, nada mais se exige senão liberdade. E
a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a
de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém,
exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis,
mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocinei, mas pagai! O sacerdote
proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai,
tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por
toda a parte a limitação da liberdade.
4. USO PÚBLICO E PRIVADO DA RAZÃO
Que
limitação, porém, impede o esclarecimento [Aufklärung]? Qual não o impede, e
até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre
e só ele pode realizar o esclarecimento [Aufklärung] entre os homens. O uso
privado da razão pode, porém, muitas vezes ser muito estreitamente limitado,
sem, contudo, por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento
[Aufklärung]. Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão
aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do
mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão
em determinado cargo público ou função a ele confiada. Ora, para muitas
profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário certo
mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se
de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma
unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser
contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida
permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte
da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando
até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na
qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de
acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por
isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo.
Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem,
quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência
ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode
impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no
serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue.
O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele
recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem
ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma
desobediência geral). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever
de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a
inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o
sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à
comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi
admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até
mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias,
cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo
naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da
essência da religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um
peso na consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo
como funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o
livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor
segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja
ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se
serve. Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que
ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação
pode, contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus
enunciados a verdade esteja escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada
deve ser encontrado aí que seja contraditório com a religião interior. Pois se
acreditasse encontrar esta contradição não poderia em sã consciência
desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um
professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um
uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a
assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o
direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao
contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o
mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de
fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os
tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores
constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos.
5. CRIAR OBSTÁCULOS CONTRA O PROGRESSO DAS
LUZES É UM CRIME CONTRA A NATUREZA HUMANA.
Mas
não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de
clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os
holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo
credo invariável, a fim de por este modo de exercer uma incessante supertutela
sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a
perpetuar essa tutela? Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato,
que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento [Aufklärung] do
gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado
pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma
época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que
se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os
mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do
esclarecimento [Aufklärung]. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja
determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está,
portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo
não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um
povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele
próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei
melhor, por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo
tempo, se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira
eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é,
por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições
vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da
natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a
ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação,
ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades
inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem
detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente
proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha
publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e
com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade
no caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a
posteridade. Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo
assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento
[Aufklärung]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua
descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da
humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir com relação a si
mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade
legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na
sua. Quando cuida de toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a
ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si mesmos o
que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe
importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos
de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção
de si. Causa mesmo dano à sua majestade quando se imiscui nesses assuntos,
quando submete à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus
súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo acontece quando procede
assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas
também e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo
que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado
contra os demais súditos.
6. A ÉPOCA ATUAL É DE “ILUMINISMO”, NÃO UMA
ÉPOCA ILUMINADA
Se
for feita então a pergunta: "vivemos agora uma época esclarecida [aufgeklärten]"?,
a resposta será: "não, vivemos em uma época de esclarecimento [Aufklärung].
Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em
conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em
matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio
entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de
que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a
trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento
[Aufklärung] geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual
são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do
esclarecimento [Aufklärung] ou o século de Frederico.
Um
príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever
nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena
liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é
realmente esclarecido [aufgeklärt] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e
pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da
menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a
liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência
moral. Sob seu governo os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo de
seu dever funcional expor livre e publicamente, na qualidade de súditos, ao
mundo, para que os examinasse, seus juízos e opiniões num ou noutro ponto
discordantes do credo admitido. Com mais forte razão isso se dá com os outros,
que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito de liberdade
espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar contra
obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si
mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a
tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo
de inquietação. Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do
estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los
nesse estado.
7. O ILUMINISMO DEVE SE REFERIR SOBRETUDO
ÀS COISAS DE RELIGIÃO
Acentuei
preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento
[Aufklärung], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque
no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse
em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é
de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um
chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo
no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos
fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mundo suas
idéias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo por meio de uma corajosa
crítica do estado de coisas existentes. Um brilhante exemplo disso é que nenhum
monarca superou aquele que reverenciamos.
8. UM PARADOXO: UMA LIBERDADE CIVIL MAIOR
PÕE MAIORES LIMITES À LIBERDADE DO ESPÍRITO DO POVO.
Mas
também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido
[], não tem medo de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um
numeroso e bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública,
pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinais tanto
quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei!
Revela-se aqui uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; como,
aliás, quando se considera esta marcha em conjunto, quase tudo nela é um
paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de
espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites intransponíveis; um
grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa.
Se, portanto, a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o germe de
que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento livre,
este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que
este se torna capaz cada vez mais capaz de agir de acordo com a liberdade), e
finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para
si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo
com a sua dignidade.
Por: Rogério Andrade
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