ANÁLISE E RESUMO DO TEXTO DE “O DISCURSO DO MÉTODO” DE RENÉ DESCARTES.
José Rogério de Pinho Andrade
O pensamento
cartesiano, típico do contexto histórico de formação da modernidade,
caracteriza-se pela experiência da derrocada cultural da época. Marcado pela
crise da modernidade, se configura como uma crítica à filosofia e à lógica
tradicionais, bem como ao saber matemático e a busca de uma nova fundamentação
do saber.
De traços
humanísticos, a modernidade é crítica na necessidade de seus fundamentos. Entre
o ceticismo e o dogmatismo medievais, bem como a expansão do empirismo é um
contexto paradoxal que precisa ser solucionado. Segundo REALE & ANTISERI
“se estava difundida
a confiança no homem e no seu poder racional, também estava bastante difundida
a incerteza sobre o caminho a tomar para garantir uma coisa e superar a outra”.
(p. 288)
Nesse tempo, o
pensamento de Descartes apresentava-se como uma superação de tais problemas.
Queria ele
“oferecer regras
certas e fáceis, que corretamente observadas, levarão ao conhecimentos
verdadeiro de tudo aquilo que se pode conhecer”. (p. 288)
Para o filósofo, são
quatro as regras que devem ser seguidas e estão apresentadas em sua obra O Discurso do Método. Essas regras
constituem o modelo do saber, porque estabelecem clareza e distinção ao
conhecimento, são elas:
1 – A evidência
racional: é o ponto de partida e de chegada de toda atividade racional. Se
alcança mediante a intuição autofundamentada e autojustificada. Assim se
enuncia:
“nunca aceitar algo
como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar
cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos
que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não
tivesse motivo algum de duvidar dele”. (p.49)
2 – A segunda regra é
a defesa do método analítico, único que pode levar à evidencia. Diz:
“o de repartir cada
uma das dificuldades em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias
a fim de melhor solucioná-las”. (p. 49)
3 – A terceira regra
é o procedimento da síntese estabelecedora do nexo e do encadeamento do
raciocínio. É expresso
“o de conduzir por
ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o
conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que
não se precedem naturalmente uns aos outros”. (p. 50)
4 – A quarta e última
regra apresenta-se como a enumeração e revisão necessárias para impedir
qualquer precipitação. Diz,
“o de efetuar em toda
parte relações metódicas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza
de nada omitir”. (p. 50)
Após estabelecer as
regras é preciso justificá-las, explicá-las em sua universalidade e
fecundidade.
Na busca de verificar
se o saber tradicional contém alguma verdade de forma clara e distinta que se
subtraia a qualquer razão de dúvida, Descartes aplica-lhes as regras, pois a
condição é que não seja lícito aceitar como verdade quaisquer afirmações que
estejam maculadas pela dúvida.
Ele verifica que boa
parte do saber tradicional pretende ter base na experiência sensível, mas outra
boa parte se funda sobre a razão. Pro fim, o saber matemático que parece
indubitável, porque válido em todas as circunstâncias.
Mas, como confiar em
um conhecimento que tenha como base os sentidos se estes nos confundem e nos
enganam? A razão também não está imune à dúvida, portanto, à obscuridade e
incerteza. Nem sequer se pode dizer que a matemática esteja isenta, pois ela
pode ser obra de um “gênio maligno, astuto e enganador”, que brincando nos faz
considerar coisas evidentes quando não o são.
Com a dúvida
estabelecida, Descartes busca
“pôr em crise o
dogmatismo dos filósofos tradicionais, ao mesmo tempo que também quer combater
a atitude cética, que se comprazia em pôr tudo em dúvida sem nada oferecer em
troca”. (REALE & ANTISERI, p.292)
Ao duvidar, chega, a
partir da própria dúvida, à certeza de que existe. Como diz em sua obra O Discurso do Método
“E, ao notar que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos cético não seriam capazes de lhe causar abalo,
julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da
filosofia que procurava”. (p. 62)
A proposição “eu penso, logo existo” é absolutamente
verdadeira, pois mesmo a dúvida mais radicalizada e extremada a confirma. Mais,
tal expressão se apresenta como uma intuição, é o pensamento em ato sem
qualquer mediação indicando porque a clareza é a regra fundamental do
conhecimento e porque a intuição é seu ato fundamental. Ela não é um
raciocínio, mas uma intuição pura e é ela que lhe faz ver a natureza de sua
própria existência como res cogitans,
uma realidade pensante, sem qualquer separação entre pensamento e ser.
A aplicação da regras
do método levou à descoberta do homem como realidade pensante que revela-se de
modo claro e distinto. A filosofia não é mais a ciência do ser, mas sim
doutrina do conhecimento, pois a partir de agora
“a atividade
cognoscitiva, mais do que se preocupar em fundamentar suas conquistas em
sentido metafísico, deve procurar a clareza e a distinção, que são os traços
típicos da primeira verdade que se impôs à nossa razão e que devem ser a marca
de qualquer outra verdade”. (REALE & ANTISERI, p. 293)
A certeza fundamental
é a do Cogito, isto é, penso, logo existo.
O método conduz à reta razão que pertence a todos os homens. Deste modo, seu
método adquire uma dimensão universal e funda todos os outros conhecimentos. A
reta razão é “a faculdade de julgar bem e
distinguir o verdadeiro do falso (...) aquilo que se chama bom senso ou razão,
[e que] é naturalmente igual em todos os homens”. (REALE & ANTISERI, p.
294)
É a razão bem guiada
e desenvolvida que representa a unidade dos homens, pois, “a unidade das ciências remete à unidade da razão. E a unidade da razão
remete à unidade do método”. (REALE & ANTISERI, p. 295)
Após alcançar a
primeira certeza fundamental, a consciência de si mesmos como ser pensante,
busca encontrar outras idéias que se apresentam com o caráter de auto-evidência
do cogito. Como será possível sair dela e reafirmar o mundo externo?
Necessário se faz,
recordar que para Descartes as idéias são divididas em três tipos: idéias
inatas, adventícias e factícias.
1 – As idéias inatas
são aquelas que encontramos em nós mesmos, junto com a nossa consciência;
2 – As idéias
adventícias são aquelas que vêm de fora de nós e nos remetem a coisas
diferentes de nós;
3 – As idéias
factícias ou construídas por nós mesmos. São ilusórias. Porque quiméricas ou
construídas arbitrariamente.
Descartando as
últimas, o problema que resta é tentar entender a objetividade das idéias
inatas e das adventícias. Quem lhes garante a objetividade? A resposta é
direta: a clareza e a distinção.
Para fundamentar
definitivamente o caráter objetivo de nossas faculdade cognitivas, Descartes
propõe e resolve o problema da existência e do papel de Deus.
Ao se deparar com a
existência da idéia inata de deus, ele se pergunta se é uma idéia puramente
subjetiva ou se não deve ser considerada ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. É
o problema sobre a existência de Deus proposto a partir da própria consciência
do homem.
Parte do princípio de
que o efeito só pode retirar sua realidade de sua causas e que esta só pode
transmitir o que possui, conclui que a idéia inata da perfeição de Deus não é
de autoria do próprio homem, mas só pode ser proveniente de um ser perfeito,
Deus.
Uma segunda reflexão
decorrente desta primeira, ou seja, da idéia inata de deus, considera que negar
a existência de Deus criador é considerar-se como autoproduto, o que nos
levaria a nos dar toda as perfeições que encontramos na idéia de Deus.
Um terceiro argumento
utilizado pelo filósofo, é conhecido como a prova ontológica da existência de
deus, parte do pressuposto de que
“a existência é parte é parte integrante da
essência, de modo que não é possível ter a idéia (a essência) de deus sem
simultaneamente admitir sua existência (...) já do simples fato de que não
posso conceber Deus sem existência deriva que a existência é inseparável dele
e, portanto, que ele existe verdadeiramente”. (DESCARTES, Apud REALE &
ANTISERI, P. 297)
Descartes se atém à
idéia de Deus para
“defender a
positividade da realização humana e, do ponto de vista do poder cognoscitivo,
sua natural capacidade de conhecer o verdadeiro; e, no que se refere ao mundo,
a imutabilidade de suas leis”. (REALE & ANTISERI, P. 297)
A hipótese do gênio
maligno é derrotada pela força protetora de Deus. A dúvida é derrotada e o
critério da evidencia se justifica conclusivamente, pois
“O deus criador
impede que se considere que a criatura seja portadora de um principio
dissolutivo dentro de si, ou que suas faculdades não estejam em condições de
cumprir suas funções”. (REALE & ANTISER, p. 298)
Qual seria, então a
origem do erro, pois se Deus é verdadeiro e não enganador? Naturalmente o erro
é imputável ao próprio homem, porque nem sempre se mostra fiel à clareza e à
distinção. O erro brota da vontade sobre o intelecto. Consiste no uso
inadequado da razão.
Depois de tratar do
problema da fundamentação do conhecimento e de indicas as causas e implicações
do erro, passa a tratar do conhecimento do mundo e de si enquanto existente no
mundo.
Descartes chega à
existência do mundo corpóreo aprofundando as idéias adventícias. Tal existência
é possível por causa do fato de que o mundo é objeto das demonstrações
geométricas, que se baseiam na idéia de extensão. Há, ainda, a capacidade do
intelecto em imaginar e sentir.
Se esse poder de
ligação com o mundo natural fosse enganoso, concluir-se-ia que Deus, que nos
criou assim, não é veraz - isto já foi demonstrado. Deste modo,não há porque
pôr em discussão as faculdades imaginativas e sensíveis, visto elas atestarem a
existência do mundo corpóreo. Este é concebido como extensão, pois que é a
única coisa concebida como clara e distinta dos corpos.
A extensão é a
propriedade essencial do mundo material. O mundo espiritual é res cogitans, o mundo material é res extensa. As outras propriedades do
mundo material são secundárias e não é possível ter delas uma idéia clara e
distinta.
A realidade está
dividida em duas outras realidades: a res
cogitans e a res extensa. A
primeira se referindo ao mundo espiritual e a segunda ao mundo material.
Não há graus
intermediários entre a res cogitans e
a res extensa. Tato o mundo como o
corpo humano devem encontrar explicação suficiente no mundo da mecânica. Deste
modo, os elementos essenciais para explicar o mundo físico são: matéria
(entendida como extensão) e movimento.
As leis fundamentais
que regem o mundo físico são: 1- O princípio de conservação do movimento,
segundo o qual a quantidade de movimento permanece constante, contra qualquer
possível degradação de energia ou entropia; 2 – O Princípio de inércia que
parte do pressuposto de que uma vez iniciado, o movimento tende a prosseguir na
mesma direção e 3 – O princípio do movimento retilíneo para o qual toda coisa
tende a mover-se em linha reta.
O pensamento
cartesiano, é uma tentativa de unificar a realidade, mediante modelos mecânicos
de inspiração geométrica. Para ele, tanto o corpo quanto os organismos são
máquinas e, portanto, funcionam com base em princípios mecânicos que regulam
seus movimentos e suas relações.
A vida é redutível a
uma espécie de entidade material que levada do coração ao cérebro pela corrente
sanguínea, se difunde pelo corpo e preside ás principais funções do organismo.
É negada aos
organismos a existência da alma. Esta, somente os homens a possuem e ela se
revela por meio da palavra, que “é o
único sinal e a única prova segura do pensamento oculto e encerrado no corpo”.
(DESCARTES, Apud REALE & ANTISERI, p. 301)
No homem, pela
glândula pineal encontrada no centro do cérebro, encontram-se juntas as duas
substâncias claramente distintas entre si, a res cogitans e a res extensa.
É a alma que estabelece o ponto de encontro entre dois mundos, ela não é vida,
é pensamento. Não tem nada em comum com o corpo.
Contudo, há uma
interferência constante entre essas duas vertentes. Por qual razão e de que
modo a alma move o corpo e age sobre ele? A resposta nos leva a entender como a
fisiologia do corpo pode influir na conduta. Esboça-se um quadro de análise das
ações movidas pela vontade e das alterações, que são percepções, sentimentos ou
emoções provocados pelo corpo e captados pela alma.
Tem como objetivo
mostrar que a alma pode vencer as emoções, ou, ao menos, frear as solicitações
sensíveis que a distraem da atividade intelectual, direcionando-as para as
amarras da paixão. Dois sentimento são importantes, um nos mostrando as coisas
das quais devemos fugir e outro, as que devemos cultivar. São eles,
respectivamente, a tristeza e a alegria.
Somo guiados pela
nossa razão, pois ela é a única que pode avaliar e, consequentemente, induzir a
acolher ou rejeitar certas emoções. A sabedoria consiste, portanto, na adoção
do pensamento claro e distinto como norma, tanto do pensar como do viver.
No Discurso do Método, Descartes apresenta
algumas normas que são entendidas como máximas provisórias de uma moral também
provisória. São normas simples que é oportuno lembrar sempre.
A primeira dessas
normas diz,
“obedecer às leis e
aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual deus me concedera a
graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais,
de acordo com as opiniões moderadas e mais distantes do excesso, que fossem
comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais eu teria de
conviver”. ( DESCARTES, p. 53)
Estabelecendo a
distinção entre a contemplação e a busca da verdade de um lado, e as exigências
do dia-a-dia de outro, o filósofo considera que para a verdade, há a exigência
da evidência e da distinção, que sendo alcançadas nos dão o juízo. Quanto às
exigências do cotidiano, considera suficiente o bom senso, expresso pelos
costumes do povo junto do qual vive.
A segunda regra da
moral provisória cartesiana
“consistia em ser o
mais firme e decidido possível em minhas ações, e em não seguir menos
constantemente do que fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre
que eu me tivesse decidido a tanto”. (DESCARTES, p. 55)
É uma norma
pragmática, de caráter imediato que conclama a romper as protelações e exige
tomada de decisões. No entanto, não se deve esquecer da permanência da
obrigação de examinar a veracidade e a bondade dessas opiniões. Para superar as
indecisões, receitava o hábito de formular juízos certos e determinados sobre
as coisas que se apresentam, convencendo-se de que foi cumprido o próprio dever
quando se fez aquilo que se julgava o melhor, ainda que seja julgado muito mal.
A terceira regra visa
a reforma de si mesmo que é possível fazer refinando-se a razão, mediante o
habituar-se às regras da clareza e da distinção. Diz em seu texto,
“procurar sempre
vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do
que a ordem do mundo”. (DESCARTES, p. 55)
A quarta máxima tem
como função mais importante o propósito de retificar a vontade reformando a
vida no pensamento. Encontra-se no texto,
“achei que o melhor a
fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja, utilizar
toda a minha existência em cultivar a minha razão, e progredir o máximo que
pudesse no conhecimento da verdade de acordo com o método que me determinara”.
(DESCARTES, p. 57)
A ética cartesiana é
orientada para a lenta e trabalhosa submissão da vontade à razão, como força-guia
de todo o homem. Identifica, portanto, virtude à razão, com a fuga dos apetites
e das paixões.
A liberdade da
vontade se configura pela submissão à ordem que o intelecto é chamado a
descobrir, dentro e fora de si. É sob o peso da verdade que o homem pode
considerar-se livre, pois, seguir a verdade é seguir-se a si mesmo, na máxima
unidade interior e no pleno respeito à realidade objetiva.