Liberais,
libertários e comunitários – todos democratas.
Paulo Ghiraldelli Júnior
Paulo Ghiraldelli Júnior
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May 31, 2012
A
política brasileira dos últimos anos trouxe má fama ao termo “liberal”, se é
que já não bastasse para tal o nosso passado mais distante. O Partido da Frente
Liberal (PFL) e o Partido Liberal (PL) que, aliás, já nem mais existem, nunca
se pareceram com qualquer coisa que se pudesse imaginar como liberal em um
manual de ciência política. Somado a efeitos das mazelas educacionais já
tradicionais no Brasil, e também a certo antiamericanismo atávico que perpassa
nossa academia, essa má fama da palavra “liberal” ajudou a empurrar nossos
estudantes (e infelizmente também alguns professores) para uma quase
impossibilidade de compreensão intelectual do liberalismo. No entanto, não há
estupidez que se possa vangloriar como sólida por toda a vida.
Quando
olhamos antes a filosofia política anglo-americana que a européia-continental,
o termo “liberal” não tem como ser descartado. Nessa tradição da literatura em
filosofia política, sempre podemos distinguir duas grandes facções, os liberais
clássicos e os liberais modernos. John Locke foi o pensador liberal clássico
que ensinou a doutrina política da tolerância religiosa e das leis que deveriam
proteger a liberdade individual e as propriedades do indivíduo, inclusive e
principalmente o pensamento e a vida, também tomados como propriedades. Mas, ao
final do século XIX e início do século XX a América já havia produzido os
liberais modernos. John Dewey foi um dos grandes entre estes tipos – inclusive
como o pai intelectual do New Deal do Presidente Roosevelt. Nos anos setenta, então,
John Rawls protagonizou-se como o revigorador dessa linha de pensamento.
Essa
corrente dos modernos, a de Rawls, ficou conhecida como a dos liberais
igualitários, e fazendo-lhe oposição fixaram-se duas escolas de liberais que,
nos Estados Unidos, foram chamadas de libertárias, enquanto que no resto do
mundo, talvez de modo errôneo, seus membros tenham ficado conhecidos como
“neoliberais”. Esses libertários se dividiram em dois grandes grupos. E ambos
tiveram como alvo o trabalho de Rawls.
A
ideia básica de Rawls é que o liberalismo como doutrina política funciona
segundo uma forma de justiça. No caso, a melhor justiça para tal seria aquela
que viesse da teoria criada por ele próprio e batizada como “teoria da justiça
como equidade”. Tal modo de vida liberal seria regrado pela ideia da garantia
de liberdades básicas, jamais cerceadas senão por razões de outras liberdades,
e de modo a favorecer a igualdade de oportunidades, empregos e posições de
poder, sendo que toda diferença que viesse a se ampliar na sociedade só se
justificaria se efetuada no sentido de beneficiar os menos favorecidos pela
sorte. Em outras palavras: o liberalismo promove a liberdade e a igualdade, e
qualquer desigualdade surgida deve ser em função dos benefícios dos que estão
em pior situação.
É
claro que essa ideia de liberalismo de Rawls, baseado na justiça como equidade,
acaba por reclamar do Estado uma certa participação mais positiva diante
daquela invocada por Locke. Os libertários, obviamente, não poderiam mesmo
concordar com isso. Entre os libertários, pensadores como Friedrich Hayek
jamais se interessaram por princípios filosófico-morais. Defenderam a ideia de
um estado mínimo por razões de eficiência deste em relação ao bem comum. Mas,
filósofos como Robert Nozick fixaram-se em princípios. Sua ideia de que Rawls estava
errado se baseava em uma questão doutrinária: são direitos naturais do homem
poder ficar com o que se consegue ficar por meios legais e legítimos, seja por
trabalho, compra e venda, herança ou troca. Assim, qualquer plano
redistributivista que a Justiça como Equidade pudesse trouxer à baila, seria
por si só uma injustiça.
Esse
embate expressou um lado dos confrontos na filosofia política de linhagem
anglo-americana. O outro lado ficou por conta das críticas dos comunitaristas
aos liberais.
Quando
olhamos o panorama geral, podemos ver que a crítica comunitarista ao
liberalismo tem suas raízes nas observações de F. W. Hegel contra Immanuel Kant
e de Karl Marx contra o liberalismo em geral. Os comunitaristas sabem disso.
Todavia, eles nunca se filiaram claramente a qualquer posição que não fosse a
democrática. Por isso mesmo, nunca puderam ser colocados como críticos do
liberalismo enquanto advogados de qualquer arranhão no tipo de democracia que
vingou na América. Assim, pensadores como Michael Walzer, Michael Sandel,
Charles Taylor e outros desenvolveram críticas ao liberalismo não
necessariamente quanto ao tamanho do Estado. Eles se concentram em aspectos da
teoria de Rawls, reclamando do seu caráter abstrato. Essa crítica tem seus
percursos e peculiaridades. Mas ela, ao menos em princípio, não é nada fraca ou
pouco ambiciosa, pois ela quer atingir a ideia central da doutrina liberal
rawlsiana.
Eis
o centro do liberalismo de Rawls: trata-se de uma doutrina antes deontológica
que teleológica. Em outras palavras: Rawls advoga uma doutrina que visa a
constituição prioritariamente de princípios básicos de justiça, sem qualquer
ocupação moral que, enfim, queira fixar o que é o bem. Uma doutrina que se
preocupa com o bem, e que busca fazer a sociedade se regrar por essa
finalidade, é chamada de teleológica. As doutrinas teleológicas são postas de
lado por Rawls, em especial uma que ocupa um bom espaço no senso comum inglês e
americano: o utilitarismo.
Os
utilitaristas pregam que uma doutrina de organização social deve visar antes o
bem que a justiça. A ideia geral é a de se colocar a felicidade como o bem.
Assim, a felicidade do maior número de pessoas é o que há de mais útil. Sabe-se
que algum tipo de socialismo inglês se originou por essa via. Mas Rawls
prioriza a justiça e, particularmente, a sua teoria da justiça como equidade.
Para ele, o importante é deixar o bem por conta de indivíduos e grupos, como alguma
coisa que o pluralismo da sociedade moderna vai manter sempre em discussão.
Agora, a justiça, esta sim é de ordem da política. Ela é o liberalismo como
garantia da liberdade, que já se explicita na liberdade a respeito de cada um
poder defender a sua ideia de como conduzir a vida, a sua perspectiva
filosófica e religiosa. Mas ela é, também, o liberalismo como o esforço de
proteção dos princípios igualitários.
Ora,
os comunitaristas duvidam que essa divisão entre doutrinas deontológicas e
teleológicas possa se fazer de modo nítido. Eles acham que nenhuma concepção de
justiça, muito mesmo a de Rawls, é neutra quanto a pressupostos morais que,
enfim, derivariam da adoção de teorias filosóficas e arranjos religiosos. Pois,
para eles, a justiça emerge a partir da moral, e esta vem da ligação das
pessoas com as suas tradições, com a sua comunidade e, assim, com as filosofias
vigentes e, principalmente, com as religiões do seu lugar de origem.
Desfazer-se disso é esvaziar as pessoas. Ora, como que pessoas vazias saberão,
enfim, o que é mesmo justo ou não justo?
Os
comunitaristas negam que exista princípios universais racionais de moral e
justiça. Acreditam que o liberalismo, ao insistir na existência de tais
princípios, antes prejudica que ajuda o próprio liberalismo. Enfraquece suas
pernas ao fazer um discurso vazio e, assim, abre a porta para fundamentalismos.
Assim,
levando a sério a crítica comunitarista, pode-se imaginar que a promissora
neutralidade do liberalismo cai por terra. É aí que é interessante chamar a
presença de Richard Rorty. Talvez ele tenha sido um dos poucos filósofos da
América a perceber que a disputa entre liberais e comunitários não deveria ser
levada adiante.
Rorty
prefere tomar Rawls como querendo estabelecer não um campo neutro, e muito
menos abstrato. Para ele, o que Rawls faz não é kantiano, é historicista.
Ralws, para Rorty, não é outro senão aquele que adota claramente a posição do
americano que, enfim, tem se dado bem com a divisão entre o que é da ordem da
política e, portanto, da justiça, e o que é da ordem da moral, isto é, o que
deriva de concepções filosóficas abrangentes e concepções religiosas. Assim,
não é o caso de se querer um “eu” abstrato como legislador, mas, ao contrário,
cabe desejar exatamente o que os comunitaristas dizem que querem, só que com um
detalhe: quem é escolhido como legislador, uma vez vindo da comunidade
americana, trará consigo, como sendo básico e comum, a aceitação dos princípios
liberais de que não há razão para jogar as questões que envolvem disputa
filosófica ou religiosa para o campo da política, ao menos não no sentido de querer
com isso arrebentar a estrutura básica da justiça, ou seja, o próprio
liberalismo.
O
que ocorre então é que o pressuposto de abstração que os comunitaristas
denunciam pode ser verdadeiro, mas isso não muda nada em Rawls. Pois, no limite,
ele não está mesmo utilizando desse pressuposto. Ele pode ficar com o
legislador que emerge prenhe de saberes e valores comunitários. Mas esse
legislador, por vir de um meio historicamente liberal democrático, vai agir como
quem quer manter o que seria a neutralidade da política diante da filosofia e
da religião.
Por
isso, Rorty disse que John Dewey havia sido um pensador comunitarista e, ao
mesmo tempo, o mais liberal dos democratas americanos. Sandel teve conhecimento
do artigo de Rorty em que este leu Rawls por essa nova via e, por isso mesmo,
reviu suas posições. No entanto, por outras razões, ele ainda continua
atualmente imaginando poder atacar Rawls. Mas isso já é assunto para um outro
texto.