Por: José Rogério de Pinho Andrade
Ontologicamente há coisas (objetos) reais e objetos ideais. Existem no
sentido mesmo de ser, são entes. Entretanto, quando se trata de valor, em que
sentido é possível afirmar que “há valores”?
Diante da realidade existencial do mundo, ele não é indiferente para o
ser humano. Não há nada que exista perante o qual o ser humano não adote uma
postura positiva ou negativa, uma posição de preferência, de avaliação, de
valoração. Neste sentido, “não há coisa alguma que não tenha um valor.” (GARCIA
MORENTE, 1980, p. 298)
O que se enuncia de alguma coisa quando ela é avaliada como boa ou má,
útil ou inútil? Certamente não é da ordem do ser que se trata tal avaliação,
mas sim da ordem do valer. O que é enunciado é o valor. Entretanto, do que se
trata o valor?
A filosofia tem distinguido entre juízos de existência ou realidade e
juízos de valor. Os primeiros “enunciam de uma coisa aquilo que ela é, enunciam
propriedades, atributos, predicados dessa coisa, que pertencem ao ser dela,
tanto do ponto de vista da existência dela como ente, como do ponto de vista da
essência que a define.” Já os juízos de valor “enunciam acerca de uma coisa
algo que não acrescenta nem tira nada do cabedal existencial e essencial da
coisa. Enunciam algo que não se confunde nem com o ser enquanto existência nem
com o ser enquanto essência.” (GARCIA MORENTE, 1980, p. 298)
Como conclusão, tem-se que “os valores não são coisas nem elementos das
coisas”, mas também, como erroneamente já se considerou, os valores não são
impressões de caráter subjetivo de agrado ou desagrado que as coisas produzem
no sujeito e que o sujeito projeta nas coisas. O critério do valor não é uma
propriedade do ser do objeto e muito menos um sentimento ou uma projeção
sentimental do sujeito, pois “acerca do agrado ou desagrado subjetivo não há
discussão possível”, enquanto dos valores é possível discutir.
É possível discutir sobre os valores porque eles são objetivos, eles
estão aí e não são simplesmente o resíduo de avaliações subjetivas. Os valores
não são coisas, mas também não são impressões subjetivas, pois não possuem a
categoria própria dos objetos reais e dos objetos ideais, isto é, não possuem a
categoria de ser. “os valores não são, mas valem”, pois uma coisa é valor e
outra coisa é ser. (GARCIA MORENTE, 1980, p. 300)
Dizer que algo vale, não é dizer o seu ser, mas dizer que não é
indiferente. Deste modo, “a não-indiferença constitui esta variedade ontológica
que contrapõe o valor ao ser. A não-indiferença é a essência do valer.”
Esclarecendo-se ainda mais, afirma-se que “ter valor não é ter uma realidade
entitativa a mais ou a menos, mas simplesmente não ser indiferente, ter esse
valor.” (GARCIA MORENTE, 1980, p. 300)
O valor é uma qualidade, é algo que se adere ao ente embora não o
caracterize enquanto tal. É uma qualidade irreal porque não é uma coisa, não é
uma “res”. Mas também não é uma
qualidade ideal porque não tem fundamento e consequências, não demonstra a
“valiosidade” da coisa, mas tão somente mostra-a. os valores, portanto, não são
qualidades reais e nem ideais, são qualidades irreais.
Os valores possuem ainda as seguintes características: são independentes
do número, do tempo e do espaço; são absolutos, mas são percebidos e intuídos
relativamente pelos seres humanos. Assim, “os valores não são entes, mas
valentes. Que os valores são qualidades de coisas, qualidades irreais,
qualidades alheias à quantidade, ao tempo, ao número, ao espaço, e absolutas.”
(GARCIA MORENTE, 1980, p. 303)
A não-indiferença em que consiste o valor implica, necessariamente, uma
polaridade como possibilidade de afastamento, positivo ou negativo, do ponto
zero de indiferença. Isto é, “na entranha mesma do valer está contido que os
valores tenham polaridade: um polo positivo e um polo negativo. Todo valor, tem
seu contravalor.” (GARCIA MORENTE, 1980, p. 303)
Ao contrário da polaridade dos
sentimentos ou da polaridade psicológica que é infundada por força da
subjetividade, a polaridade dos valores é “fundada, porque os valores expressam
qualidades irreais, mas objetivas, das coisas mesmas.” (GARCIA MORENTE, 1980,
p. 304)
Os valores são também hierárquicos. Há uma multiplicidade de valores e,
enquanto tal, são modos de não-indiferença e “essa não-indiferença dos valores
nas suas relações múltiplas, uns com respeito aos outros, é o fundamento de sua
hierarquia.” (GARCIA MORENTE, 1980, p. 304)
Afirmar que há hierarquia entre os valores, significa reconhecer que
determinados valores afirmam-se superiores em relação a outros, como por
exemplo, que os valores religiosos afirmam-se superiores aos valores éticos,
que por sua vez afirmam-se superiores aos valores estéticos, que afirma-se
superiores aos valores lógicos, etc. O que se quer dizer, portanto, que um
valor se afirma superior a outro?
A resposta de Garcia Morente
(1980, p. 305) esclarece que se for considerado um ponto zero de indiferença,
mais valiosos são os valores mais distantes deste ponto zero. Assim, diante da
condição de escolher entre os valores, o sacrifício deve ser feito em relação
aos valores mais próximos do ponto zero de indiferença, pois quanto mais
distante, menos indiferentes são os valores. Assim, entre salvar a vida de uma
criança ou deixar que se destrua um quadro, a preferência se faz sobre salvar a
vida da criança.
Por fim, Garcia Morente (1980, p. 305-306) faz duas observações
importantes ainda com relação à hierarquia dos valores: a primeira afirma que o
estudo pormenorizado de um determinado grupo de valores, leva a uma ciência
correspondente ao grupo ao qual os valores fazem parte. Assim, a teoria pura
dos valores úteis, é o fundamento da ciência econômica. Os estudos dos valores
morais, serve de fundamento à ética, assim como o estudo dos valores lógicos,
servem de base à lógica.
Quanto à segunda observação, a teoria dos valores como não-indiferença,
não renuncia à unidade do ser, pois, precisamente porque
Os valores não são é que não
atentam nem menoscabam em nada a unidade de ser. Dado que não são, mas que
valem, que são qualidades necessariamente aderidas de coisas, estão
necessariamente aderidas às coisas. Representam aquilo que na realidade há de
valer. (GARCIA MORENTE, 1980, p. 307)
Deste modo, integra-se à realidade, porque confere-lhe um valor, isto é,
os valores não são, mas representam qualidades valiosas das coisas mesmas.
(GARCIA MORENTE, 1980, p. 307).
Referência:
GARCIA MORENTE, Manuel. Fundamentos
de filosofia. Tradução e prólogo Guilhermo de la Cruz Coronado. 8ª ed. são
Paulo: Mestre Jou, 1980.